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Corpos são territórios. Em contextos de guerra, a metáfora dá lugar para a realidade de corpos retalhados, invadidos e tomados pelo “inimigo”. Os corpos das mulheres são os principais atingidos por uma guerra, seja porque qualquer corpo é um alvo, seja porque as mulheres são um botim de guerra, isto, é a apropriação de algo que pertence ao inimigo para poder servir de moeda de troca.
O que pensar da declaração do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, de que o seu país não foi ao Afeganistão para “formar uma nação”, quando assistimos às cenas de um país desolado, destruído e abandonado por todo o mundo, sobretudo, por aquele que o ocupou por duas décadas?
As imagens do abandono do Afeganistão à sua própria sorte é, na verdade, um borrão. Já não vemos mais um povo ou uma nação.
Não vemos as histórias de vida de pessoas nem a cultura de um país, que, no caso do Afeganistão, é milenar. Vemos uma terra arrasada à espera de seus pedaços serem divididos por potências econômicas.
Os EUA saíram do Afeganistão sem considerar – ou, então, calcularam muito bem – que o país da Ásia não tinha a menor condição de se constituir como uma nação democrática consolidada nos valores dos direitos humanos, porque ela ainda está sob a ameaça do Talibã, que conseguiu expandir-se por todo o território do país, incluindo a região norte.
O retorno do Talibã é simbólico: ocorre na véspera do aniversário de 2o anos dos ataques ao World Trade Centre, em Nova York, e ao Pentágono, em Washington, no dia 11 de setembro de 2001, quando Osama Bin Laden, líder da Al-Qaeda, os orquestrou com o apoio do Talibã, que governava o Afeganistão à época.
Há quem diga que, após 20 anos, tudo parece retornar ao ponto de partida com o grupo fundamentalista de volta ao comando do país, ameaçando a vida e os direitos de homens e mulheres, principalmente. Entretanto, estamos hoje em 2021 e não mais no início do século XXI com seus vestígios, ainda, de um Afeganistão que tinha uma sombra do regime socialista.
A declaração de Biden, portanto, de que “Nós não fomos ao Afeganistão para formar uma nação. É direito e responsabilidade exclusiva da população afegã decidir seu futuro e como querem administrar seu país” soa irresponsável.
Os EUA têm responsabilidade sobre o destino do Afeganistão, visto que patrocinou o Talibã na década de 1980 para conter o papel da União Soviética no país.
Em 1979, a União Soviética interviu no Afeganistão, fazendo com que o então presidente dos EUA Jimmy Carter assinasse um decreto presidencial autorizando o financiamento para o treinamento de milícias anticomunistas no país asiático.
A empreitada foi seriamente levada adiante por seu sucessor, Ronald Reagan, que apoiou o poderio militar estadunidense a treinar, equipar e comandar as forças de mujahedin contra o Exército Vermelho. Entre 1978 e 1992, os EUA investiram 20 bilhões em força bélica para o Afeganistão.
No início da década de 1990, com o fim da Guerra Fria, as tropas soviéticas saíram do Afeganistão dando origem a um movimento de estudantes de seminários religiosos, no norte do Paquistão, que tinha uma leitura fundamentalista do Islã. Assim surge o Talibã, que prometia restaurar a paz e a segurança pela imposição da sua versão da Sharia (lei islâmica).
A versão talibã da Sharia prevê execuções públicas de supostos assassinos, adúlteros e amputações para ladrões, proibição a mulheres de frequentarem escolas e universidades, além de obrigá-las a vestirem a burca, uma vestimenta que cobre todo o corpo.
Entidades de direitos humanos têm se mostrado preocupadas com a situação das mulheres no Afeganistão desde que o Talibã tomou o poder nesses últimos dias. Até 1989, quando o grupo surge, as mulheres compunham 70% do corpo docente das universidades, 50% dos servidores públicos e 15% do corpo legislativo do país, além de terem direito a voto.
Com a visão distorcida da Sharia, as mulheres foram impedidas de trabalhar, sair de casa sem o consentimento do marido, morar sozinhas e estudar a partir dos 12 anos. Se quebrassem as regras que lhes eram impostas, sofriam humilhações e violências públicas, como apedrejamento por adultério e chicoteamento por mostrar o rosto.
Em julho deste ano, após o Talibã dominar duas regiões do Afeganistão, líderes religiosos foram obrigados a entregar uma lista de meninas com mais de 15 anos e viúvas com menos de 45 anos para casarem com os milicianos. É comum que mulheres se tornem, também, escravas sexuais.
Ainda que o líder do Talibã tenha dito que as mulheres serão tratadas de outra forma desta vez, as organizações em defesa dos direitos humanos mostram-se receosas, porque tal estratégia retórica é usada por outros países, como a Arábia Saudita, para conseguir participar de acordos internacionais.
A ativista Malala Yousafzai, que foi vítima do Talibã quando saía da escola no Paquistão, em 2012, usou as redes sociais para pedir ajuda das potências globais para as mulheres, como informa o G1:
“Assistimos em completo choque enquanto o Talibã assume o controle do Afeganistão. Estou profundamente preocupada com mulheres, minorias e defensores dos direitos humanos. Poderes globais, regionais e locais devem pedir um cessar-fogo imediato, fornecer ajuda humanitária urgente e proteger refugiados e civis”.
A captura do feminino é um modo de captura do popular comunitário. De acordo com a antropóloga Rita Segato em seu livro “As novas formas da guerra e o corpo das mulheres”, quase se pode afirmar que o plano dos administradores de guerras no mundo contemporâneo não é a paz, mas sim que a guerra seja, em muitas regiões do mundo, uma forma de existência.
Foi na década de 1990, com as guerras da Bósnia e Iugoslávia, que se instituiu esse novo paradigma bélico. Para Segato, desde então:
“A impressão que emerge desse novo acionar bélico é que a agressão, a dominação e o abuso sexual já não são, como foram anteriormente, complementos da guerra, mas sim adquiriram centralidade na estratégia bélica. Precisamente por essa mutação, depois de sua invisibilidade e como consequência da pressão de entidades de direitos humanos, a violação e a violência sexual praticadas como parte de um processo de ocupação, extermínio ou sujeição de um povo por outro foram sendo incorporadas paulatinamente pela legislação sobre crimes de guerra, genocídio e lesa humanidade”.
A Organização das Nações Unidas (ONU) e a comunidade internacional preveem lançar um programa para enviar reforços ao Afeganistão. De acordo com a rede Al Jazeera, só a Índia já acolhe mais de 15 mil refugiados do país vizinho.
A União Europeia se reuniu hoje para discutir o que se passa no Afeganistão, uma vez que uma onda migratória pode atingir a região. No início desta semana, o presidente francês Emmanuel Macron se comprometeu a proteger “aqueles que estão em maior risco” e a trabalhar conjuntamente com a Alemanha no desenvolvimento de um plano de combate ao aumento da migração vinda do Afeganistão:
“Devemos nos antecipar e nos proteger contra grandes fluxos migratórios irregulares que colocariam em risco aqueles que os utilizam e alimentam o tráfico de todos os tipos”.
Ainda segundo a Al Jazeera, a ONU estima que mais de 550 mil pessoas foram deslocadas desde o início do ano do Afeganistão, sendo que cerca de 80% delas são mulheres e crianças.
Internautas do mundo inteiro lembram o Afeganistão ontem e hoje. O sentimento é de pesar e indignação.
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Categorias: Sociedade
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