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O mundo nunca foi um lugar muito justo: uns têm muito, enquanto outros têm muito pouco. Mas a sensação, recentemente, é que a fenda da desigualdade está se tornando mais abissal.
Tal sensação é corroborada pelas estatísticas, que afirmam que a concentração de renda, em todo o mundo, está cada vez maior. Entre países e dentro deles é visível o aumento da desigualdade social, que abrange não apenas o fator renda, como, também, condições de oportunidade e acesso a serviços.
A Organização das Nações Unidas (ONU) lançou um alerta, no Fórum Político de Alto Nível, em Nova York, sobre as ameaças que vêm impedindo os progressos para o alcance dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) em 2030, informou o El Pais. De acordo com Máximo Torero Cullen, vice-diretor-geral do departamento de desenvolvimento econômico e social da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO):
“A desigualdade faz com que os pobres e marginalizados tenham menos oportunidades de sair da pobreza”. Para que isso não aconteça, segundo ele, é preciso “alcançar progressivamente e manter o crescimento da renda dos 40% mais pobres da população a uma taxa superior à média nacional”.
A estimativa da ONU em 69 dos 92 países comparados é que os 40% dos pobres aumentaram a sua renda, no período de 2011 a 2016, mas com variações territoriais. Apesar desse aumento, essa parcela ainda recebeu menos de 25% da renda total nacional.
Para reduzir a pobreza, é preciso entender melhor esse conceito. Para o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e a Iniciativa sobre Pobreza e Desenvolvimento Humano de Oxford (OPHI, na sigla em inglês), entidades que elaboram anualmente o Índice Global de Pobreza Multidimensional, existe 1,3 bilhão de pessoas multidimensionalmente pobres nos 101 países de renda baixa e média analisados. As carências desse contingente humano envolvem saúde, educação e qualidade de vida.
O estudo do PNUD reforça que é preciso saber onde as pessoas pobres estão para combater a pobreza. Só assim os governantes de cada país poderão tomar medidas efetivas e eficazes para esse propósito. Um exemplo é a Índia, que conseguiu em uma década (2006-2016) retirar da pobreza 271 milhões de pessoas.
Uma medida de combate à pobreza ilustrada por Sabina Alkire, diretora da OPHI, é que há países que não tiveram crescimento econômico, mas conseguiram reduzir multidimensionalmente a pobreza.
Quem são as pessoas mais afetadas pela pobreza? Ainda na esteira da reportagem de El Pais, de acordo com o Índice de Pobreza para Multidimensional, são, principalmente, as pessoas que vivem em áreas rurais, as mulheres e as crianças. Elas são mais carentes em relação ao acesso à água potável, educação, nutrição adequada e moradia digna. Nos países da África subsaariana, 63,5% das crianças são pobres – em Burkina Faso, Chade, Etiópia, Níger e Sudão do Sul, 90% das crianças menores de 10 anos estão nesse grupo.
Um outro grupo vulnerável é o dos homossexuais. O membro do Tribunal Constitucional da África do Sul, Justice Edwin Cameron, em seu discurso na assembleia da ONU, alertou para os vários tipos de discriminação que levam à criminalização. Ele deu como exemplo a sua própria história.
“Como homem gay orgulhoso em uma África do Sul homofóbica pré-democrática, vi e experimentei o medo de poder ser detido, preso e condenado que pode sentir uma pessoa gay. Entre os países representados aqui na ONU, 69 ainda criminalizam as relações entre pessoas do mesmo sexo, a maioria no meu continente: a África”.
As perseguições a homossexuais, a quem pratica a prostituição e a quem consome drogas os deixam vulneráveis. Cameron destaca o caso de portadores de HIV que, por serem criminalizados, deixam de receber tratamento adequado para a doença.
Aumentando o grupo dos vulneráveis estão os trabalhadores informais. A professora de políticas públicas da Harvard Kennedy School e assessora principal da rede global Mulheres no Emprego Informal: Globalizando e Organizando (WIEGO, na sigla em inglês), Martha Chen, informa que eles representam 61% dos trabalhadores do mundo, cerca de 2 bilhões de pessoas, das quais 90% vivem em países pobres. As minorias étnicas e as mulheres compõem a maioria dos trabalhadores na informalidade.
Consoante a especialista, a relação do trabalho informal com a desigualdade é que os trabalhadores nessa condição sofrem de carências como: trabalho digno, direitos, proteção, acesso à moradia e a serviços sociais, inclusive, canais para se expressarem. Além disso tudo, eles são estigmatizados socialmente, penalizados e até criminalizados por tentarem trabalhar honestamente.
Um exemplo disso está nas ruas do Brasil. Quantos vendedores ambulantes e recicladores de lixo são detidos? As prefeituras, no lugar de recolher as suas mercadorias, poderiam mapear esses trabalhadores e dar a eles condições legais para exercerem a sua atividade. Se consideramos que, em épocas de crise econômica, a informalidade tende a aumentar, penalizar e criminalizar esses trabalhadores é que é um crime, cometido pelo próprio Estado.
Chen sugere que os ambulantes sejam apoiados com facilidades para trabalhar em “espaços públicos centrais e seguros” e que os recicladores tenham “espaços de armazenamento”. Ela defende que: “Temos de acolhê-los em vez de estigmatizá-los e penalizá-los. O entorno político e jurídico deve priorizar os empregados que estão na base da pirâmide. Fala-se muito em criar empregos, mas às vezes se tomam decisões em cidades que, literalmente, destroem dezenas de milhares deles, de vendedores ambulantes e coletores de resíduos”.
Os idosos também fazem parte do grupo de vulneráveis. Considerados um fardo, eles precisam ser vistos como importantes para o desenvolvimento social e econômico dos países.
Nessa lista também estão as mulheres, sobretudo, as do sul global. As mulheres ganham menos do que os homens e estão em uma defasagem política que levaria 107 anos para atingir a equidade.
Não apenas os pobres são vítimas da desigualdade: os ricos também são. Redistribuir a riqueza é uma medida urgente para acabar com o fosso que a concentração de renda estabelece. E não há outra maneira de fazer isso se não quem ganha mais contribuir mais, lutar contra os paraísos fiscais e a evasão de impostos.
Outra responsabilidade dos ricos, falando em termos de nação, é que os países mais desenvolvidos têm uma responsabilidade maior sobre a questão climática. O pensador uruguaio Roberto Bissio, secretário internacional do Social Watch, comenta que: “Nos exames nacionais de acompanhamento dos ODS, os países não falam oficialmente da desigualdade, nem dos impactos extraterritoriais de suas ações, não apenas o que tem a ver com o clima, mas também com os paraísos fiscais, a exportação de armas. Acontece que as ações positivas relatadas pelos países escondem diversos impactos negativos.
Estamos vendo a desigualdade afetar nações ricas, sobretudo, as europeias, fazendo aumentar o radicalismo e o populismo em seus territórios por causa do empobrecimento da classe média nos últimos anos. Essa classe, distante dos ricos e afetada pela piora na prestação de serviços públicos e pelo desemprego, tem-se voltado para partidos de extrema direita com pautas nacionalistas.
O economista Branko Milanovic, autor de “Global Inequality” (Harvard University Press), faz uma leitura de que, atualmente, existe um “voto de protesto” contra a ausência de programas que acolham os problemas da classe média, divulga uma reportagem da Folha de S. Paulo. Caso não sejam estancados, tais problemas podem afetar o crescimento econômico.
Entretanto, como enfatiza Martin Wolf, comentarista-chefe no jornal britânico The Financial Times, soluções fáceis como o Brexit e as defendidas por Donald Trump, Jair Bolsonaro e Mateo Salvini, entre outros expoentes do radicalismo, não resolverão o problema, pelo contrário, só o ampliará, uma vez que em momentos de crise as pessoas tendem a culpar alguém, em geral, algum grupo em vulnerabilidade.
O economista Lucas Chancel, um dos coordenadores do Relatório da Desigualdade Global, considera que a globalização fracassou para muitos. Logo, é preciso reorganizar a integração econômica global para evitar “reações violentas” no futuro. Em entrevista para a Folha, ele questiona até que ponto aceitaremos os atuais níveis de desigualdade, que culminam em um ponto central para as democracias modernas: discutir sobre como a riqueza deve ser compartilhada.
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