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Longe de polarizar a relação entre saúde e economia, o novo coronavírus está nos fazendo refletir sobre como, em momentos de crise, decisões devem ser tomadas para reafirmar o valor da vida.
Em países nos quais a vida é um bem inalienável, essa polarização não está posta, diferentemente do Brasil, onde a vida tem sido questionada e escalonada economicamente. Embora todos nós já soubéssemos que algumas vidas eram tratadas pela elite financeira, representada por alguns políticos, como menos valorosas do que outras, o discurso econômico tem se valido do coronavírus para colocar em ação aquilo que estava subentendido discursivamente.
A fala de investidores do mercado financeiro e do próprio presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, defende a tese de que o isolamento social irá aprofundar a recessão. Usando-se de um gráfico, Campos Neto interpretou-o da seguinte maneira: “quando você tem um achatamento maior, você tem uma recessão maior e vice-versa”, em uma live organizada pela XP Investimentos, uma das maiores corretoras de valores do Brasil, para mais de 6 mil pessoas, informa uma reportagem da The Intercept.
Para melhor entender a fala de Campos Neto, é preciso analisar o seu currículo. Neto do economista Roberto Campos, que foi ministro do Planejamento do governo ditatorial de Castelo Branco, ele foi executivo do mercado financeiro por quase duas décadas, tendo trabalhado por 18 anos no Banco Santander. Estudou nos Estados Unidos, de onde trouxe toda a sua visão neoliberal da economia, cunhada expressamente em sua live: o gráfico serve “para ilustrar que existe essa troca [entre salvar vidas ou combater a recessão] e é uma troca que está sendo considerada”.
Para Campos Neto e para o atual ministro da Saúde, Nelson Teich, essa lógica está respaldando a circulação de um discurso que estava escondido, mas que agora está sendo, sem qualquer pudor, construído para que a própria sociedade o tome como uma verdade naturalizada.
É claro que nas trincheiras dos hospitais, médicos sempre tiveram que fazer escolhas difíceis sobre quais pacientes têm mais chance de sobreviver do que outros, em circunstâncias excepcionais. Entretanto, o que está sendo posto pela lógica do governo de Jair Bolsonaro é transformar em regra o que é exceção.
De acordo com The Intercept, a fala do presidente do BC está cheia de vícios éticos. Além de defender a economia – e não a vida -, ele usou um gráfico extraído de um livro no qual há artigos compilados de pesquisadores (a maioria deles europeus) que concluem que a recessão econômica provocada pela quarentena é uma “medida de saúde pública necessária”. Ou seja, Campos Neto apropriou-se de um texto equivocadamente dando a ele uma interpretação conveniente para si e para o seu público. O livro em questão, que pode ser baixado gratuitamente pela internet, chama-se “Mitigating the covid economic crisis: act fast and do whatever it takes” – “Reduzindo a crise econômica da covid: agir rápido e fazer todo o possível” (tradução livre).
O cruzamento do discurso de um representante do mercado financeiro com o dos lobbistas da saúde, representado por Teich, caiu como uma luva para a ação de isolamento vertical defendida por Jair Bolsonaro. Sem qualquer respaldo médico ou científico, a expressão “made in Brazil” foi adotada pelo governo para mitigar os efeitos econômicos da pandemia no país, indo na contra-mão das recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) para que o isolamento social seja mantido para, inclusive, minimizar a recessão.
Os próprios investidores que escutaram Campos Neto durante a live não estão muitos certos da tese defendida por ele, visto que o isolamento social, um ato de cuidado voluntário, pode transformar-se em uma quarentena, causando mais prejuízos ainda para a economia. É o que pensa, por exemplo, o economista-chefe da XP, Marco Ross:
“Para mim, não é claro que uma restrição [de circulação] mais forte é naturalmente mais deletéria para a economia. Inclusive, uma restrição parcial, seja ela o que for – a gente não sabe o que é uma restrição parcial – pode também ter um efeito econômico negativo, de aumentar o contágio e se ter que de repente se abortar o plano, voltar para uma quarentena”.
A recessão econômica é um dado real que vai afetar todos os países do mundo. A diferença de seus impactos localmente está na forma como os representantes políticos irão lidar com ela. Economistas do Centro de Pesquisa em Política Econômica estão em consenso sobre isso. Para eles:
“A recessão é uma necessidade médica. Isso está posto. Mas governos podem e devem tentar achatar a curva da recessão econômica”.
Isso significa que cada país deve tomar medidas para manter viva a sua economia, através de planos emergenciais que garantam, pelo menos, uma renda mínima para desempregados e trabalhadores informais e um plano de apoio econômico para pequenos empresários, bem como atender o mercado financeiro para que não haja uma fuga de capital, o que seria negativo para as contas públicas.
Isso tudo não pode ser encontrado na fala do presidente do BC, quem, na opinião de Monica de Bolle, pesquisadora do Instituto Peterson de Economia Internacional e professora da Universidade Johns Hopkins (EUA), mostra uma atitude “ignorante” e “irresponsável”:
“Ele passa um recado totalmente equivocado e deixa no ar a mensagem para os investidores pressionarem o governo pelo fim do isolamento social”, disse ela ao The Intercept.
Outros economistas consultados pela publicação pensam como de Bolle, como o professor da Universidade de Brasília, Newton Marques, que diz que a flexibilização do confinamento proposta por Campos Neto mostra que o governo não se importa com a morte dos brasileiros, desde que os investidores não percam dinheiro.
“Bolsonaro está sendo pressionado para evitar a recessão, mas não se pode trocar vidas por economia. O problema é que o Brasil não tinha um plano para a crise, como outros países, e foi lento para reagir. Sem as medidas tomadas pelos governadores, Congresso e Judiciário, era possível que o governo tivesse implantado o [que Bolsonaro chama de] isolamento vertical”, ilustra Marques.
O mundo inteiro já sabe o que por aqui estão fingindo não saber: quanto mais se tarda em cumprir o isolamento e a quarentena, pior será para a economia e para o sistema de saúde, que entrará em colapso, como já está acontecendo no Amazonas e no Ceará.
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