Que lições podemos tomar do coronavírus?


Existiria algo mais, além de ficar pensando em quarentena ou entrar em pânico, que pode passar pela nossa cabeça durante esses dias que não sabemos quando irão terminar?

Se há uma coisa que parece não ter fim é a imaginação humana. É hora de, no lugar de reclamações e lamentos, colocarmos a nossa criatividade para jogo: inovar em um prato na cozinha, fazer aquela série de exercícios da Jane Fonda, cuidar das plantas, arrumar a casa, ler aquele livro que a gente sempre promete que vai ler mas nunca dá tempo, ficar em silêncio.

Contextos sociais

Obviamente, tais dicas valem apenas para os privilegiados que podem fazer home office ou têm alguma reserva de dinheiro no banco. Infelizmente, essa não é a realidade da maioria dos trabalhadores brasileiros e daqueles que hoje têm subempregos, em grande parte afetados pela reforma previdenciária que lhes tirou, inclusive, o direito de poder estar em casa com alguma garantia num momento como este.

A maioria da população terá que enfrentar exaustivas horas em pé no transporte público lotado para chegar ao trabalho, já que a classe média e o empresariado não entenderam a gravidade da situação no Brasil e no mundo.

Além daquilo que podemos fazer individualmente para nos fortalecer neste momento em que precisamos estar sãos de corpo e espírito, é importante também refletirmos de forma mais ampla e abrangente sobre o campo social, a fim de entendermos em que desenho de mundo surge a pandemia do coronavírus.

Humildade

Para os que se acham a última bolacha do pacote, saber que um ser minúsculo e invisível pode causar o caos, é algo a se pensar. Ou seja, um vírus é bem mais poderoso do que qualquer um de nós, embora alguns posem de super-heróis. Nenhuma ação isolada resolve um problema coletivo, embora cada um de nós seja responsável de tudo e por todos, lição que Dostoiévski nos deu muito antes do coronavírus – aliás, está aí um daqueles projetos para se colocar em prática: ler o escritor russo na quarentena.

Solidariedade e união

Esses dias, o pessoal do Soma Studio Milano nos deu de presente, em sua conta no Instagram, a recordação do verso “No man is an island”, do poeta inglês John Donne. Literalmente, nenhum homem é uma ilha. Embora sejamos seres únicos e idiossincráticos, vivemos em comunhão com os demais. Em tempos de egoísmo, narcisismo e individualismo, o Covid-19 está nos ensinando a nos unir e a pensar coletivamente para enfrentá-lo.

Saúde pública

Como os defensores do “Estado mínimo” podem sustentar, agora, o modelo de saúde dos Estados Unidos ou o projeto de desmantelamento do SUS no Brasil? Desde o governo de Michel Temer, que congelou os investimentos públicos para a saúde e a educação, o nosso sistema de saúde, já anteriormente frágil, deu início a uma era de sucateamento cuja conta agora o coronavírus está vindo cobrar.

Fortalecer os serviços públicos essenciais é fundamental para a vida, ainda mais em momentos extremos. Até mesmo o presidente da França, Emmanuel Macron, um liberal, saiu em defesa do fortalecimento da saúde pública em seu país.

Em um texto de Slavoj Zizek, publicado pelo site Outras Palavras, sobre o poder subversivo do coronavírus, o filósofo diz que a pandemia não apenas mostra a necessidade da saúde pública, como a urgência da criação de um tipo de rede global de saúde.

Meio ambiente

A intervenção humana na natureza está causando vários desastres, em diferentes âmbitos. Estamos em guerra com os animais, que estão mostrando as suas forças para impedir que nós demos seguimento ao nosso plano de extermínio do meio ambiente. Não fosse isso, talvez jamais conhecêssemos o coronavírus.

Naquele mesmo texto, Zizek nos lembra de que não estamos apenas lidando com uma ameaça viral; há tempos estamos desafiando a natureza, que vem nos respondendo com tornados, ondas de calor, secas, tempestades descontroladas e epidemias.

O coronavírus forçou a desaceleração da economia com o fechamento das fronteiras (redução do trafego aéreo e menos emissões de gases de efeito estufa na atmosfera). De repente, vimos como um mundo menos frenético poderia fazer bem a todos.

Teoria da Conspiração

Essa sempre existiu. Os conspiradores podem falar à vontade que o novo corona é uma fantasia, que a mídia está exagerando, mas a verdade é que a comunidade científica de todo o mundo está junta e empenhada em saber mais sobre um vírus misterioso que chacoalhou o planeta. 

Essa pandemia está nos ensinando que a conspiração não imuniza nem livra ninguém da responsabilidade de cooperar. Essa é a única verdade nessa onda de incerteza.

Capitalismo selvagem

Já diz a música que o capitalismo é selvagem. Pois parece mesmo que fomos todos lançados numa selva, como os sobreviventes da série Lost, que precisam reinventar uma nova forma de vida.

A ensaísta Coralie Delaume, em uma entrevista ao Figaro Vox, disse que as crises econômica, migratória e sanitária que estão minando os países europeus, colocaram a União Europeia (UE) à beira de um precipício. Nas palavras dela, a epidemia do coronavírus é, hoje, decisiva para o capitalismo, como o desastre de Tchernobyl foi para o governo soviético – posição da qual Zizek também compartilha. Isso porque as crises provocadas pelo coronavírus podem invalidar os pressupostos do neoliberalismo e do europeísmo, deixando à mostra a falsidade do primeiro.

Delaume dá como exemplo dessa farsa o caso da Itália como membro da UE. Um relatório da fundação Gimbe, de 2019, mostra que, nos últimos dez anos, a Itália reduziu suas despesas hospitalares em 37 milhões de euros, o que provocou o fechamento de 7 mil leitos. A fim de atender à chamada política de austeridade, o estado italiano ajudou vários bancos, inclusive recentemente, em dezembro de 2019, com a injeção de emergência de 900 milhões de euros no Banco Popular de Bari – um dinheiro que poderia estar salvando vidas agora.

Em sua crítica ao capitalismo, Zizek o compara a uma entidade viva. Ele dá como exemplo disso as notícias sobre o mercado financeiro, que nos sugerem que deveríamos nos preocupar mais com a “apreensão dos mercados” do que com as milhares de pessoas que já morreram e que ainda podem ser levadas pelo Covid-19.

Essa inversão de valores sinaliza que necessitamos urgentemente de uma reorganização da economia global, ou, como se diz no jargão informático quando um vírus ataca um computador, precisamos “resetar” o sistema.

Ninguém em sã consciência está saindo em defesa de um socialismo ao molde soviético, mas o mundo não anda bem. Embora como cegos que não querem ver nós bem já sabíamos disso, agora, o novo corona está jogando essa verdade bem na nossa cara.

A globalização não pode ser uma via de mão única por onde transita apenas o mercado econômico. Ela só tem sentido se pensarmos em termos de responsabilidades globais e locais.

Neste último sentido, sobretudo, é preciso entendermos que, se alguns estão na segurança de seus lares, é porque têm privilégios sociais pagos pela força de trabalho da maioria. Este momento deveria servir, também, para refletirmos sobre isso e como sociedade é uma oportunidade para estarmos mais unidos em prol do bem comum.

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Gisella Meneguelli

É doutora em Estudos de Linguagem, já foi professora de português e espanhol, adora ler e escrever, interessa-se pela temática ambiental e, por isso, escreve para o greenMe desde 2015.


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