Enquanto a Covid-19 se alastra, preocupa o mundo e faz da Itália um país literalmente fechado na Europa – ninguém entra, ninguém sai – a vizinha Grécia é palco de uma grave crise humanitária, ainda pouco falada nestes tempos de pandemia.
No último dia 6, o jornal espanhol El País publicou uma galeria de imagens de refugiados sírios, a maioria em Erdine, na fronteira terrestre da Turquia com a Grécia, onde eles esperam por uma oportunidade para entrar na Europa. São cenas de homens, mulheres e crianças alojados de forma precária, dormindo em prédios abandonados ou em campos abertos, alguns em barracas, outros em colchões no meio de um bosque, ao lado de fogueiras para amenizar o frio, na ausência de cobertores.
Essa nova onda de refugiados é resultado dos recentes conflitos em Idlib, na Síria, último reduto da oposição ao governo de Bashar al-Assad.
Mas a concentração de pessoas, amontoadas em uma área de passagem, não é a única explicação para o clima de tensão na região, intensificado nos últimos dias. Também se deve à ação unilateral da Turquia que, depois de perder mais de trinta soldados em uma batalha no final de fevereiro, fez o que tantas vezes antes ameaçou fazer: abriu suas fronteiras com a Grécia e a Bulgária, criando a expectativa, entre as pessoas deslocadas, de um caminho livre rumo à Europa. Algo que, no entanto, não vem se confirmando na prática.
A decisão do governo de Ankara gerou animosidade com Atenas e resultou em uma troca de farpas entre os vizinhos nos últimos dias.
Na quarta-feira (4), quando circularam imagens de soldados gregos contendo imigrantes na fronteira com canhões de água e gás lacrimogênio, os turcos acusaram a Grécia de matar um migrante e ferir outros cinco que tentavam forçar a entrada no país.
Os gregos, por sua vez, negaram “categoricamente” que pessoas tenham morrido em seu território e acusaram a Turquia de espalhar fake news.
Na ocasião, o presidente turco Recep Tayyip Erdogan chegou a fazer um apelo para que os gregos respeitassem os refugiados que chegassem em seu território, disparando críticas também à União Europeia, afirmando que todos os países que fecham suas portas para os migrantes violam os direitos humanos e as convenções internacionais, conforme noticiou o jornal italiano La Repubblica.
A acusação dos turcos foi feita poucos dias depois de ter viralizado um vídeo em que agentes da guarda-costeira grega são flagrados abrindo fogo contra uma embarcação com dezenas de refugiados a bordo.
Para completar, o ministro do interior turco, Süleyman Soylu, anunciou, no último dia 6, que enviaria 1.000 policiais para a fronteira, com o objetivo de evitar que a Grécia devolvesse imigrantes para a Turquia.
Segundo informações da AFP, o porta-voz do governo grego, Stelio Petsas, havia afirmado, no dia 29 de fevereiro, que a Grécia fora confrontada na véspera com uma “tentativa organizada, em massa e ilegal” de violação de suas fronteiras.
De acordo com alguns relatos, os refugiados estariam sendo encorajados, no lado turco, a se dirigirem para o posto da fronteira terrestre entre os dois países e acessar a Europa via Grécia, onde encontram portas fechadas. Com essa postura, Erdogan estaria usando os refugiados como “peões” para pressionar a União Europeia e levar o bloco a cumprir a promessa de liberar 6 milhões de euros para a Turquia, além de apoiar as investidas de seu governo na Síria – sendo essa a única alternativa para solucionar a crise migratória, segundo o presidente turco.
As atitudes hostis contra os migrantes não se restringem às autoridades e forças de segurança da Grécia. Como noticiou a Folha de São Paulo, no dia 1º de março, 150 moradores da Ilha grega de Lesbos queimaram um centro de acolhida na praia de Skala Sykamineas. O centro, antes administrado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), estava desativado pelas autoridades locais desde janeiro deste ano.
A atitude dos moradores visou impedir uma possível reabertura do centro, em um dia em que várias embarcações com imigrantes aportaram na Ilha. Segundo informações da AFP, cerca de 70 refugiados, sem cobertores, ainda estavam na praia quando isso ocorreu.
A animosidade entre os vizinhos Grécia e Turquia, no entanto, é apenas mais um desdobramento de uma situação bem mais complexa, que se estende há nove anos. A insegurança das pessoas e a tentativa de transformar os imigrantes em um alvo a ser combatido também não é nova e vem, inclusive, sendo capitalizada para alavancar grupos políticos até então pouco expressivos.
Como destacou o jornalista João Paulo Charleaux, do Nexo Jornal, a guerra na Síria envolve uma disputa de interesses das potências globais nos moldes da Guerra Fria, que resultou em uma fuga em massa do país entre 2011 e 2019, período em que mais de cinco milhões de pessoas cruzaram a fronteira. Dentre os que ficaram, mais de 13 milhões precisam de ajuda para sobreviver.
Charleaux lembrou ainda que, embora metade desses refugiados esteja concentrada no Líbano e na Turquia, foi na Europa que a crise migratória teve maior impacto político, resultando na alavancagem da extrema-direita, que capitalizou em cima do medo e da insegurança instaurados no Velho Continente e fez do discurso anti-imigração a sua principal bandeira.
Desde 2017, os diversos envolvidos no conflito cantam suas vitórias: seja pela permanência de Assad no poder, por parte de quem o apoiou, seja porque o Estado Islâmico foi debelado.
Mas, como concluiu o jornalista do Nexo,
“derrotados mesmo terminaram os civis, vítimas de uma das maiores crises humanitárias do mundo”.
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Categorias: Sociedade
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