Abuso sexual é mais comum do que imaginamos: qualquer pessoa pode ser vítima


Há poucos dias, o GreenMe chamou a atenção para um problema que ainda é real em muitos países: a violência sexual em menores de idade.

A matéria em questão mostrava a tentativa que ainda vigora para defender abusadores sexuais, incluindo, aqueles que atentam contra a vida e a dignidade de crianças.

A Turquia é, ainda, um país onde esse tipo de defesa existe. O governo turco quer instituir uma lei que garante a liberdade de presos condenados por abuso infantil, caso se casem com as vítimas. A proposta de lei visa a tornar legal uma prática que, na verdade, já acontece no país, visto que uma estimativa da Organização das Nações Unidas prevê que cerca de 482 mil meninas menores de 18 anos se casaram na Turquia entre 2000 e 2010.

Abuso sexual infantil

O abuso sexual ocorre embaixo dos nossos olhos. Em geral, sobretudo quando as vítimas são menores, o ato é praticado por parentes ou pessoas muito próximas à família das crianças, sejam elas meninas ou meninos. É o que afirma a médica infectologista Ivete Boulos, que coordena o atendimento a vítimas de abuso sexual no Núcleo de Assistência à Vítima de Violência Sexual (Navis) do Hospital das Clínicas de São Paulo.

A especialista, que atende esses casos há mais de vinte anos, deu uma entrevista a El Pais falando sobre o perfil das vítimas e sobre as discussões para mudar a legislação vigente no Brasil, que, ao invés de apoiar a vítima, busca condená-la uma vez mais. De acordo com Ivone, pesquisas no mundo todo corroboram que o abuso sexual em menores de até sete anos ocorre dentro de casa:

“Quando chega na pré-adolescência, as meninas chamam mais a atenção, mas os meninos também são muito abusados por parentes, por aquela pessoa querida da família, conhecida da escola, de ambientes religiosos. São pessoas em quem a família confia. Saem com a criança, levam para algum passeio. O agressor é o cuidador que se torna predador”.

Além das marcas físicas, há crianças que aparecem no Navis com doenças sexualmente transmissíveis. São crianças de oito anos de idade com caso de sífilis ou HIV não adquirida pela mãe durante a gestação ou no parto. Esse dado revela que a criança sofreu um estupro.

Quando a equipe de atendimento do hospital identifica o abuso em menores de 18 anos ou tem a suspeita de que ele ocorreu, a Vara da Infância é notificada sobre o caso. Quando a vítima é uma adolescente, é muito comum que ocorram conflitos familiares, uma vez que a menina não quer ter o filho e a mãe, muitas vezes por motivos religiosos, diz que a filha tem que ter a criança. Em situações como essa, o Navis aconselha a família a procurar o Ministério Público, pois a adolescente de 13 a 16 anos tem de ser ouvida por um juiz, que deve considerar o poder de decisão dela.

Abuso sexual é mais comum do que se imagina

Os abusadores infantis têm estratégias para seduzir as crianças. Aquelas que são muito pequenas, em geral, não sofrem violência com penetração; elas costumam ter seus órgãos sexuais manipulados, o que dificulta a constatação do abuso através do exame físico. É à medida que a criança cresce que a violência deixa de ser invisível. O segredo passa a ser ameaça. Ivone conta que o abusador costuma ameaçar a criança dizendo que vai matar a mãe dela, ou “pegar” a sua irmãzinha. A vítima se cala para evitar o sofrimento da família. E, assim, o abuso se perpetua por anos sem que ninguém desconfie dele.

Não apenas crianças e mulheres pobres são vítimas de abuso. Ivone relata que “a violência sexual não tem fronteiras”. Pessoas de todos os níveis econômicos podem ser uma vítima potencial de abuso. Entretanto, aquelas mais vulneráveis costumar ser as principais por não contarem com uma rede de apoio.

Aborto seguro

Nenhuma mulher que passa por um abuso sexual opta pelo aborto com um sorriso no rosto. Essa mulher já foi vítima de um abusador e, na maioria das vezes, passa a ser vítima da sociedade, que a condena como se ela fosse a causadora do seu próprio martírio. Quantas vezes não escutamos falas do tipo “ela também pediu”, “por que saiu de casa com aquela roupa?”, “bebeu demais deu nisso”.

Em sociedades em que o machismo regula as relações sociais, essas falas do senso comum buscam, na verdade, condenar a vítima para legitimar a violência masculina. Nesse processo, a estratégia é minar a credibilidade do relato da mulher. Ivone destaca ainda que:

“Não é só descrédito. É a respeito de novas situações que estão aparecendo em nosso país, como protocolos sobre o nascituro, do direito à vida desde a concepção. Essa resolução do Conselho Federal de Medicina tira a autonomia da mulher. Se o médico achar que não é adequado fazer o aborto legal, ela não vai fazer. A resolução é contraditória. Começa dizendo que a mulher tem autonomia e mais adiante diz que o médico pode modificar a resolução dela. Ficamos perplexos, com esta e outras iniciativas, como os projetos de lei que questionam direitos da mulher”.

Um dos projetos de lei a que a médica se refere é de autoria do deputado estadual paulista Gil Diniz (PSL) apresentado em 2019, que endossa muitos outros que estão sendo analisados, também, no Congresso Nacional. O que há em comum entre eles é o fortalecimento da bancada contra o aborto legal, que não tem nenhuma preocupação com as vítimas e com o futuro de uma criança filha de um estuprador.

A bancada contra o aborto legal quer usar os corpos das mulheres vítimas de abuso para perpetuar a lógica da dominação machista. Não existe nenhuma boa intenção “pró-vida” por parte de quem não acolhe ambas as vítimas, a mulher e o ser advindo de uma gestação fruto da violência.

Restringir o direito da mulher a abortar quando é vítima de abuso sexual é tirar o direito dela de receber apoio de políticas de saúde pública, o que pode vir a aumentar o número de abortos clandestinos, cujas principais vítimas são mulheres negras e pobres.

No lugar do moralismo, esse problema de origem social, que é o abuso sexual perpetrado por homens, transforma-se em um problema de saúde pública. A mulher vítima de um estupro já paga uma conta altíssima: trauma psicológico, rejeição da família e estigma. Negar-lhe o direito a receber um tratamento seguro, que inclui o aborto legal, é estender o seu sofrimento. Muitas mulheres, em total desespero, fazem um aborto de risco que as levam à morte ou que lhes causam problemas de saúde sexual e reprodutiva para toda a vida. “O número de abortos inseguros no Brasil é altíssimo”, revela Ivone.

A culpa nunca é da vítima

A vítima de abuso sexual precisa de acolhimento: da família, da sociedade e dos órgãos de saúde pública. Uma das principais dores que a vítima carrega é a culpa. No Navis, há todo um trabalho de saúde integrado para apoiar a vítima a superar esse trauma:

“A sociedade culpa, diz que o estupro foi porque vestiu aquela roupa, estava em tal lugar, bebeu não sei o quê. A família também culpa. Isso é muito trabalhado na psicologia, para a pessoa recuperar a autoestima. Nenhuma psicóloga vai dar uma borracha para apagar a situação vivenciada, mas vai mostrar à pessoa que ela é capaz de superar. Explicamos: “Todos nós somos vulneráveis a passar por uma situação de violência sexual. Mas a culpa nunca é da vítima”, explica Ivone.

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Gisella Meneguelli

É doutora em Estudos de Linguagem, já foi professora de português e espanhol, adora ler e escrever, interessa-se pela temática ambiental e, por isso, escreve para o greenMe desde 2015.


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