Epidemia de violência sexual no Brasil (inclusive infantil). Precisamos falar sobre isso


A violência de gênero é um problema cultural no Brasil. Para combate-lo é preciso muita informação e discussão na tentativa de entendê-lo e lidar a fim de evitar que mais mulheres e crianças sejam vítimas de agressores, os quais, em sua maioria, convivem com elas.

Como forma de proteção aos próprios agressores, muitas vezes eles são tratados como doentes. Entretanto, como fenômeno cultural de violência instalada em nossa sociedade, patologizar a violência de gênero não contribui para uma mudança cultural; pelo contrário, as vítimas continuam sendo agredidas e pior: consideradas a causa do problema.

Há várias formas de violentar uma mulher, mas a principal delas acaba sendo praticada pela violação de seus corpos. Ao falar do corpo feminino, é preciso dessexualizá-lo – algo que pode ser impossível na cabeça de muitos homens, tanto que as idades de vítimas de abuso e estupro são variáveis: 7 anos, 80 anos e, até mesmo, uma bebê de poucos dias.

Dados da violência de gênero no Brasil

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019, apresentado em São Paulo pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, revelou que a cada quatro horas uma menina com menos de 13 anos é estuprada no Brasil. Esse tipo de violência sexual acontece, prioritariamente, nos lares das vítimas, uma vez que é praticada por pais, padrastos, tios, vizinhos ou primos.

Os especialistas integrantes do Fórum destacaram que a melhor e mais eficaz estratégia para diminuir esse tipo de crime é a educação para a igualdade de gênero e violência sexual, haja vista que as meninas com menos de 13 anos representam 54% dos 66.000 casos de estupro registrados – sem considerar os casos subnotificados.

O Anuário contabilizou, ainda, que crimes de estupro e feminicídio tiveram um aumento de 4% – cerca de 1.200 mulheres foram assassinadas por seus companheiros ou ex-companheiros, sendo que a cada dois minutos é feita uma denúncia de violência doméstica no Brasil.

A educação sexual também é defendida pela médica legista do Instituto Médico Legal (IML) de São Paulo, Mariana da Silva Ferreira, que também é especialista em sexualidade humana pela Universidade de São Paulo (USP). Em dez anos atendendo no IML, acumulou 4.000 perícias de sexologia forense no currículo, divulga o UOL em entrevista com a médica.

De 0 a 80 – vítimas de toda idade: epidemia

Mariana já atendeu uma menina de três anos, uma senhora de 80 anos e uma bebê com apenas sete dias de vida – todas vítimas de estupro. A profissional já viu meninas estupradas por pais e padrastos e mulheres que sofreram violações de todos os tipos. Ela afirma que cerca de 80% dos casos de estupros que atendeu têm como vítimas pacientes do sexo feminino.

Mariana chama o que ocorre no país de “epidemia de violência sexual” contra menores. Fazendo eco aos dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019, um estudo do Instituto Sou da Paz, que será divulgado em breve, mostra que os casos registrados de crimes contra vulneráveis (menores de 14) tiveram um aumento de 1%.

Apesar desse aumento, Mariana analisa que estamos passando por uma mudança cultural:

“Acho que estamos em um momento de transição: apesar de haver muitos casos, vejo mais abertura para discutir o assunto e menos tolerância das pessoas aos crimes“.

A especialista, que começou a dar, este ano, um curso de capacitação sobre violência de gênero na Academia de Polícia Civil de São Paulo (primeira instituição a tratar do assunto no treinamento dos policiais do estado), diz que há alguns anos ele não teria apoio institucional, pois era um tema para o qual ninguém dava atenção.

Educação sexual na sala de aula

A médica do IML contou ao UOL sobre sua decepção com o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, que, além de não desenvolver políticas públicas voltadas ao tema da violência de gênero, apresentou um projeto que poderia agravar ainda mais a situação das vítimas.

“Quando soube da notícia do ensino domiciliar, aquilo me arrepiou inteira. A maioria dos abusos acontece dentro de casa, todas as estatísticas provam isso. Então é deixar a criança à mercê do abusador”, disse.

Como a maioria dos abusadores faz parte do convívio das vítimas, é através da escola que as denúncias costumam ser feitas. Existe uma grande resistência para que o tema ultrapasse a barreira familiar.

“A família prefere esconder e resolver entre eles, é como se denunciar fosse trazer uma vergonha para todos. Escuto muito que não querem expor o cara nem destruir a família. Aí pergunto: que família?“, denuncia Mariana.

Muitas mães naturalizam a violência a que as filhas são submetidas por seus próprios companheiros, porque elas mesmas já foram ou são vítimas de violência doméstica.

A escola, portanto, acaba tendo um papel fundamental, tanto como espaço para a educação sexual, como por ser agente denunciador da violência infantil.

“A criança passa tempo lá, os professores conhecem o comportamento dela e podem notar mudanças, veem um desenho, têm tempo para conversar. Por isso, é tão importante falar de sexualidade infantil em sala de aula”, avalia a especialista em sexualidade.

É preciso desmistiticar que educação sexual é ensinar uma criança a ter relações sexuais. A sexualidade infantil é um conceito amplo que, entre outros aspectos, diz respeito ao entendimento do próprio corpo e da sua própria intimidade, a qual não pode ser violada sob qualquer hipótese.

A cultura do machismo

Em sociedades machistas como a brasileira a violência de gênero e infantil é um problema que deve ser encarado como cultural. Situação similar a do país acontece em países como a República Democrática do Congo e o Iraque, de onde vêm dois vencedores do prêmio Nobel 2018: o médico ginecologista Denis Mukwege, que tratou e curou mais de 30 mil vítimas de violência sexual, e a ativista Nadia Murad, uma sobrevivente da escravidão sexual imposta pelo Estado Islâmico no Iraque.

Mukwege é considerado um dos maiores especialistas do mundo em reparação de danos físicos causados por violação sexual. Já Murad fugiu, literalmente, das garras do Estado Islâmico, após ter sido escrava sexual de seus integrantes por três meses . Ela é a primeira Embaixadora da Boa Vontade para a Dignidade dos Sobreviventes de Tráfico Humano das Nações Unidas.

Aqui no Brasil, um projeto realizado em uma penitenciária no Espírito Santo tem discutido com agressores a cultura do machismo. É pensando no problema da violência contra a mulher de forma global que o projeto vem sendo desenvolvido no Centro de Detenção provisória de Serra (Espírito Santo), com o intuito de debater a violência contra a mulher e o machismo com os acusados de agressão e feminicídio.

Questões como feminismo, machismo, assédio e violência são abordados através do diálogo e do meio audiovisual. Como problema sistêmico, é preciso que haja um engajamento social e político para lidar com a violência contra mulheres e meninas. Infelizmente, há pessoas que acreditam que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”, imaginário que se estende quando a vítima de violência é, também, um vulnerável. Quem se omite também agride. Por isso, a denúncia deve ser feita nos canais existentes no país.

Denuncie!

A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/ 2006) é um dispositivo legal para o enfrentamento da violência contra a mulher. São vários os canais que recebem as denúncias desse tipo de violência amparados pela lei, como:

180 – Central de Atendimento à Mulher
190 – Polícia Militar

Há, ainda, centros especializados de atendimento, como a Defensoria Pública, Centros Especializados de Atendimento à Mulher e abrigos para mulheres.

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Gisella Meneguelli

É doutora em Estudos de Linguagem, já foi professora de português e espanhol, adora ler e escrever, interessa-se pela temática ambiental e, por isso, escreve para o greenMe desde 2015.


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