Mundo pós-pandemia: o que poderá mudar no comportamento humano?


Não é tema apenas para a filosofia. Qualquer um que se inquiete com a situação posta pela pandemia do novo coronavírus está elocubrando uma série de questões caras ao universo da filosofia. O que tem isso de bom? O exercício mesmo do pensamento, através da ativação da atividade de questionar.

As perguntas sem respostas – próprias da filosofia – estão mais evidentes para nós, pois temos que lidar com elas e com a angústia que suscitam. Pensadores contemporâneos têm nos ajudado nessa tarefa conjunta de pensar o mundo e a nós mesmos antes, durante e pós-pandemia.

A Covid-19 irá promover alguma mudança em nós, humanos? Que tipo de “normalidade” será (im)posta depois que a pandemia passar?

Como explica o psicólogo argentino Fabio Lacolla ao Ámbito, o normal consiste em estar identificado com a norma. Que invenção da norma promoveremos a partir das três restrições que ele identifica como colocadas pelo novo coronavírus: a restrição sanitária, a restrição do medo e a restrição econômica?

Tendências se tornarão mais claras

Em uma entrevista à CNN, o historiador Leandro Karnal analisa que as pandemias e as guerras aceleram processos já em andamento. Um deles, já alertado por especialistas de várias áreas, é o fenômeno do individualismo e do egocentrismo nas sociedades contemporâneas.

Um outro historiador cuja opinião tem sido requisitada neste momento pelo mundo todo é o israelense Yuval Noah Harari, que também afirma que há muito o que aprender com as pandemias anteriores que assolaram o mundo, ainda que não haja um padrão único. Uma das preocupações atuais é se o distanciamento social mudará a natureza humana e as pessoas se tornarão mais isoladas.

Para Harari, isso não aconteceu com a peste negra, com a gripe espanhola e nem com a AIDS. E, provavelmente, também não se passará com a Covid-19 porque a sociabilidade é uma característica humana. O que ele prevê é que o distanciamento prevaleça no nível institucional após o término da crise sanitária.

Individualismo e espírito de vigilância

Sobre essa questão, o filósofo argentino Dario Sztajnszrajberm, em uma entrevista ao El Observador, distingue o liberalismo de um ultraliberalismo anárquico. O liberalismo clássico, como filosofia, apregoa que o Estado não deve intervir na vida das pessoas, a não ser em situações anômalas como esta que estamos vivendo. A filosofia do liberalismo se sustenta sobre uma base contratual cuja premissa básica é que a sociedade funcione a partir da prevalência absoluta do indivíduo. Logo, o “vamos cuidar de todos” é lido pelo liberalismo a partir do indivíduo, e não do bem comum. O exercício da cidadania individual, como normativa, não está agindo em favor do outro, mas para salvar-se a si mesma.

Sztajnszrajber alerta sobre a normatividade que pode ser estabelecida no mundo pós-pandemia: o espírito de vigilância na nossa relação com o outro, que passa a ser um agente de contágio e contaminação. Um dia a pandemia irá embora, mas talvez o distanciamento social não. O outro pode ficar sempre em suspeição e pronto para ser delatado. Nesse sentido, o exercício do poder de vigilância pode ser exacerbado e reduzido ao que é: a priorização do individual.

Conectados sem vínculos

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han vê com preocupação a sociedade da informação em que nos transformamos. Em seu mais recente livro, ele analisa os riscos do desaparecimento dos rituais nas comunidades contemporâneas em consequência da hipercomunicação. Embora estejamos cada vez mais conectados, a interconexão não ocorre, pois vínculos não se estabelecem.

Han também analisa, em uma entrevista para El Pais, como o egocentrismo pauta as relações nas redes sociais, onde cada um se produz e representa a si mesmo. O culto de si e a adoração do eu estão produzindo uma comunicação sem comunidade, o oposto do que produz os rituais: uma comunidade sem comunicação.

O filósofo coreano vai à raiz da palavra alemã liberdade, Freiheit, para alertar sobre algo que perdemos: liberdade significa “estar com amigos”. “Liberdade” e “amigo” têm uma etimologia comum que significa a manifestação de uma relação plena. Por isso, ele sugere que sejamos capazes de redefinir a liberdade a partir da noção de comunidade.

New Green Deal

Por uma ótica mais pragmática, o linguista Noam Chomsky, um dos principais pensadores contemporâneos, está engajado no Movimento pela Democracia na Europa 2025 (DiEM25), que está se colocando contra o neoliberalismo para “abrir a porta a alternativas progressistas preocupadas com o bem-estar das pessoas e não pela acumulação de riqueza e poder”.

Em entrevista a El Pais, Chomsky defende que o mundo precisa construir um New Green Deal (em analogia ao New Deal), que é um conjunto de propostas para transformar o sistema econômico através da redução das emissões de gases de efeito estufa.

O linguista, que é um especialista da máquina da publicidade, considera ser fundamental debater a causa da pandemia, pois a próxima pode ser mais desastrosa. Ele critica a exacerbação do neoliberalismo como o caldo de cultura da pandemia. Em 2003, a epidemia do coronavírus foi contida, mas os cientistas alertaram para a possibilidade de uma outra mais devastadora. O neoliberalismo bloqueou as instituições de pesquisa e farmacêuticas, através dos governos, movido pelo mantra “prevenir algo que ocorrerá em dois anos não dá lucro”.

A desmundialização como estratégia

Em seu texto Mondialité de la démondialisation (tradução livre: A mundialidade da desmundialização), o filósofo francês Gérard Bensussan lança uma provocação:

[…] esse mundo detido e que foi forçado a parar, esse mundo que hoje experimentamos como um laboratório, nós o queremos? Estamos prontos para tais mudanças, incluindo aqui o encarecimento de uma variedade de bens e serviços, tais como viagens, deslocamentos, lazer e cultura, às custas de uma tributação mais severa, de restrições e sacrifícios materiais e simbólicos em nosso modo de vida, relacionamentos e hábitos. E, pior ainda, ao consentirmos, em última instância e por motivos virtuosos, a uma democracia mais ou menos limitada, concordamos com a vigilância social que acabaria com o sigilo de nossas vidas, a começar pelo sigilo médico?

O mundo não vai voltar ao normal, não àquilo que tínhamos como registro de normalidade. Estaríamos nós abertos a receber essa nova normalidade que parece que irá se impor? Nem um de nós tem a chave da prisão em que nos encontramos, tampouco sabemos o que faremos com a liberdade quando descobrirmos a chave e o que iremos encontrar lá fora. Como diz Bensussan: “Não estamos mais ‘no mundo’, estamos presos nele”.

Uma transformação é possível?

Pensar que as sociedades contemporâneas sairão transformadas para construir um novo mundo parece um tanto utópico. Se, individualmente, cada um for capaz de algum tipo de transformação, a partir das reflexões das suas práticas sociais, políticas, cidadãs e de seus relacionamentos com a família, os amigos e a sua comunidade, já é algo em si mesmo bastante transformador.

O antropólogo Kabengele Munanga nos lembra, em uma entrevista ao UOL, que a cidadania é uma forma de solidariedade; exercê-la seria, pois, um caminho para abrir mão da individualidade como valor.

De carona com Sztajnszrajberm, tomara que algo aconteça, que alguma coisa se mova por entre nós. O filósofo não acredita que haverá alguma mudança social no mundo pós-pandemia, pensando em termos de abertura para o outro. Mas para algumas existências singulares pode ser que algo transformador esteja operando e fazendo com que possamos ser diferentes para nós mesmos.

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Gisella Meneguelli

É doutora em Estudos de Linguagem, já foi professora de português e espanhol, adora ler e escrever, interessa-se pela temática ambiental e, por isso, escreve para o greenMe desde 2015.


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