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As cenas de racismo registradas no último domingo (3) – quando um policial, em Salvador, agrediu física e verbalmente jovem negro de cabelo black power – ilustram exemplarmente dois problemas para os quais, há tempos, intelectuais brasileiros chamam a atenção: as contas abertas da sociedade brasileira com o passado escravocrata e o “efeito guarda da esquina”.
“Você pra mim é um ladrão. Você é vagabundo! Essa desgraça desse cabelo. Tire aí [o chapéu], vá! Essa desgraça aqui. Você é o quê? Você é trabalhador é, viado?”, responde o policial depois que o jovem alegou que era trabalhador.
Doutor em sociologia pela Universidade de Heidelberg (Alemanha), professor da UFABC e autor de quase trinta livros, o sociólogo Jessé de Souza tem uma forma toda original de olhar para o Brasil e apontar falhas de leitura dos maiores intelectuais que o país já produziu.
Estamos falando de gente como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro. O argumento de Jessé de Souza contra esses gigantes é que nenhum deles foi capaz de perceber a escravidão como elemento estruturante da nossa sociedade desde o seu nascimento, com reflexos sentidos até hoje de maneira evidente. Para o sociólogo, a escravidão, e não a corrupção, é o que define a sociedade brasileira.
Os dados sobre a violência no país, recordista mundial em homicídios, não deixam dúvidas quanto ao fato de que matamos uns aos outros mais que nações oficialmente em guerra, e não é coincidência que os grupos mais fragilizados tenham cor, classe e endereço certos: pretos, pobres e periféricos.
Esses seriam, para o sociólogo, alguns dos efeitos práticos da ausência de reflexão sobre a escravidão no Brasil, onde tende-se a naturalizar a miséria e o sofrimento alheio.
Nós não nos importamos com a dor e com o sofrimento dos pobres, as evidências empíricas são claríssimas como a luz do sol, inegáveis para qualquer pessoa de boa vontade. A polícia mata pobres indiscriminadamente – e faz isso porque a classe média e a elite aplaudem […] São provas de que temos, como sociedade, ódio aos pobres. Isso veio da escravidão, em que havia uma distinção muito clara entre quem é gente e quem não é. Por isso, não nos importamos com o tipo de escola e de hospital que essa classe vai ter, por exemplo, o que é uma enorme burrice porque estamos criando inimigos, ressentimento. A Alemanha fez um esforço extraordinário para incorporar os 17 milhões que viviam na Alemanha Oriental, tornando seu mercado mais forte, mas aqui a gente simplesmente joga no lixo esse tipo de coisa porque nunca criticamos a nossa herança escravocrata”, explica Souza.
Como se não bastasse o fato de que a violência, entranhada no nosso tecido social desde os primórdios, jamais tenha sido devidamente elaborada, vivemos tempos em que ela encontra canais para se expressar livremente.
Não só porque as redes sociais funcionam como alto-falantes para discursos de ódio, além de estimularem o encontro e a coesão de grupos que compartilham de sentimentos e ideias violentas. Mas também porque, como muitos vêm alertando desde a ascensão de Bolsonaro à presidência do Brasil, o maior perigo dos discursos de ódio e violência propagados por líderes políticos é que eles geram uma reação em cadeia com consequências práticas na ponta, na ação do “guarda da esquina”, que se sente autorizado, como o policial em Salvador, a agir de forma seletiva e violenta com cidadãos que deveria proteger.
“Isso é uma coisa que filtra lá de cima e se torna um clima que perpassa a sociedade. Estamos vendo em toda a parte, tanto em episódios pontuais como em outros mais grotescos”, declarou o historiador Boris Fausto, no ano passado, em referência ao fuzilamento do carro de uma família no Rio, alvejado com 80 tiros, disparados por militares do Exército.
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