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Na Colômbia tem uma cidade que foi construída por mulheres. Construída por mulheres que sofreram a cultura do estupro. Para poderem viver em paz.
Algumas das casas ainda estão no tijolo, cinza, algumas já estão pintadas, muitas são vermelhas, amarelas ou azuis, como a bandeira colombiana. São 98 casas que saíram das mãos de um grupo de mulheres guerreiras – a Liga de Mulheres Deslocadas (LDM), organização de vítimas do machismo mais agudo, aquele que machuca, quebra, desonra, mata. A LDM se formou há 5 anos, as mulheres se reuniram, se ajudaram, se organizaram. E hoje têm suas casas, construídas por suas próprias mãos, em um subúrbio do município de Turbaco, há 20 quilômetros de Cartagena. É a Cidade das Mulheres.
A sua história é parecida com a de muitas das nossas mulheres brasileiras. A Colômbia sofre uma guerra, interna, que já tem mais de 220 mil mortos e 6 milhões de deslocados. Quem mais sofre numa guerra são os civis e, dentre estes, as mulheres e suas crianças.
“Todas as mulheres da organização haviam sofrido de alguma forma um abuso sexual“, conta Patricia Guerrero, advogada de Bogotá que ajudou na formação da LMD. “Muitas foram estupradas, outras inclusive haviam sofrido abusos e ficaram grávidas por causa dessas violações, outras nunca puderam voltar a ter filhos, outras nunca puderam voltar a ter relações sexuais harmoniosas nem agradáveis nem prazenteiras. A guerra acabou com a sexualidade das mulheres.” Há 16 anos Patricia Guerrero conheceu as primeiras mulheres deslocadas pela guerra, em Cartagena, onde viviam em situação de extrema pobreza com seus filhos, e ajudou-as a se organizarem, encontrarem um pedaço de terra, receberem financiamentos externos, enfim, se constituírem como grupo social e serem reconhecidas em suas necessidades.
Mas, como conta uma delas, Everlides Almanza, as autoridades puseram todo tipo de dificuldades, disseram que elas não seriam capazes de construir, tentaram impedir seu intento mas, elas seguiram em frente. Se capacitaram nas técnicas de autoconstrução, dobrar ferro, assentar tijolos. E lá está a Cidade das Mulheres. Suas casas são o seu maior orgulho e também a sua segurança. Elas contam que estabelecer a comunidade não foi fácil, recebiam ameaças, queimaram o centro comunitário uma vez (e já foi reconstruído, por elas mesmas), tentaram, de todas as maneiras intimidá-las.
O Centro Cultural que foi queimado também foi reconstruído pelas mulheres da Cidade das Mulheres.
“Foi uma mudança, uma transformação impressionante porque, imagine, vivíamos em uma casa de barro, com plástico, que inundava cada vez que chegava o inverno (época de chuvas), ficava com água por aqui (mostra acima dos joelhos), perdíamos as coisas; veja que mudança há, que diferença” conta Celestina Mosquera Andrade. E também contam das violências sofridas: “Os grupos armados entravam no lugares onde os camponeses trabalhavam, violentavam as mulheres, amarravam os homens.Quando ouvia algum ruído, fugia para o monte com minha menina, minha única filha mulher – tinha cinco meninos e uma menina – e eu sempre cuidava da minha filha”, conta Everlides Almanza que sempre está vestida de preto – cor do luto. O luto de Everlides é por causa de sua filha, aquela que ela tanto lutou para salvar quando vivia no norte do país e foi perder para o feminicídio – estuprada e brutalmente assassinada pelo ex-companheiro. “Ela deixou três meninos, que ficam comigo”, disse Everlides.
As novas gerações já têm outra mentalidade
Uma dessas crianças, a neta Nayelis, de 14 anos, segue os passos guerreiros da avó. Ela é a coordenadora do grupo de jovens da LMD. “Acho que é mais fácil, porque a gente não teve que passar por tudo que elas passaram”, reflete a menina. “É muito diferente e agradeço a elas por ofereceremos uma vida melhor e uma vida digna.”
A Cidade das Mulheres mudou a vida dessas mulheres deslocadas, violentadas e guerreiras, mostrou a elas mesmas, e ao mundo, que elas podem e sabem fazer um futuro melhor. E esse trabalho já dá seus bons frutos nas novas gerações, inclusive nos homens que vivem lá, que nasceram lá. Já são homens que vêm as mulheres como seres iguais.
São os meninos que cresceram tendo como chefes de família a suas mães e avós que hoje conseguem superar esse peso cultural do machismo. É o que se ouve na fala de Jésus David Reales, hoje com 23 anos: “Eu as respeito por sua coragem, por sua valentia”.”São capazes de construir, de fazer muitas coisas, não tem por que simplesmente ficar em casa, devem estar envolvidas em tudo, em todos os aspectos do país, do mundo.”
E o que querem as mulheres da Cidade das Mulheres? “O que queremos é avançar e ter poder político, a única maneira que acreditamos que as coisas possam se transformar para as mulheres” (Patricia Guerrero).
“Já não somos vítimas do deslocamento forçado, mas sim podemos ser as mulheres que vão mudar esse momento, mulheres políticas, para emergir, para chegar a um conselho ou, por que não, ocupar postos na prefeitura.” diz Ana Luz Ortega Vázquez, da LMD.
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Fonte: BBC Mundo Colômbia
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