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A atual campeã do Carnaval carioca anunciou recentemente que, em 2020, um pastor vai desfilar na Avenida representando ninguém menos que Jesus.
Henrique Vieira, líder da Igreja Batista do Caminho, no Rio de Janeiro, é o terceiro nome revelado pelo carnavalesco Leandro Vieira, que convidou também os atores Lázaro Ramos e Humberto Carrão para encarnar as várias facetas do homem de Nazaré na Marquês de Sapucaí.
A particularidade no caso de Henrique Vieira é que o pastor – que, além de teólogo, é também ator e historiador – já havia auxiliado o carnavalesco na pesquisa sobre a vida do mestre dos cristãos.
“O enredo me motivou e emocionou. O mais interessante é que em uma época em que se prega um Jesus bélico e intolerante, a Mangueira leva para a Sapucaí um Jesus mais parecido com o que está na Bíblia”, declarou o religioso ao jornal O Dia, acrescentando que “Jesus é esse que ama incondicionalmente e se compromete, principalmente, com os mais vitimizados. Vejo respeito, seriedade e coerência bíblica por parte da Mangueira”.
Com o enredo “A verdade vos fará livre”, a Verde e Rosa pretende provocar uma reflexão: como Jesus reagiria se retornasse à Terra e se deparasse com a violência e a intolerância que hoje impera? O carnavalesco Leandro Vieira já havia anunciado que levaria para o templo do samba um Jesus Cristo empático com os sofrimentos atuais:
“Quando Cristo esteve aqui, ficou do lado dos oprimidos e não fez distinção de pessoas. Será que Jesus não está no morador da favela? No menor abandonado? No gay? Na mãe de santo?”, declarou ao jornal O Globo em julho de 2019, quando se noticiou qual samba embalaria o Carnaval 2020.
A letra deixa clara a intenção de mostrar a relação entre o nazareno que sacudiu as estruturas de poder há dois mil anos e os oprimidos de hoje:
Meu nome é Jesus da Gente
Nasci de peito aberto, de punho cerrado
Meu pai carpinteiro desempregado
Minha mãe é Maria das Dores Brasil
Enxugo o suor de quem desce e sobe ladeira
Me encontro no amor que não encontra fronteira
Procura por mim nas fileiras contra a opressão
E no olhar da porta-bandeira pro seu pavilhão
Eu tô que tô dependurado
Em cordéis e corcovados
Mas será que todo povo entendeu o meu recado?
Na época, a vitória do samba rendeu uma notícia cujo título foi: “Teologia da Libertação será tema da Mangueira em 2020”. Mas o que isso quer dizer exatamente?
Apesar de parecer inusitado que um pastor encarne um Cristo revolucionário na Avenida, não é de hoje que setores das igrejas cristãs, tanto católicas quanto protestantes, enfatizam o posicionamento de Jesus contra os poderosos e a favor dos pobres, oprimidos e marginalizados de seu tempo.
Já na década de 1960 se encontram as sementes da Teologia da Libertação, uma forma de pensar a atuação da Igreja no mundo a partir do pilar da justiça social, com centralidade nos excluídos.
No livro “A Teologia da Libertação: Balanços e Perspectivas”, publicado em 1996 pela Editora Ática, o teólogo Leonardo Boff, um dos principais representantes dessa corrente no Brasil, contou que seu nascimento se deu no fim Concílio Vaticano II, em 1965, quando cerca de 40 bispos do mundo inteiro se reuniram em Roma “inspirados pela ideia da Igreja aos pobres do papa João XXIII e animados pelo espírito profético de dom Helder Câmara”.
Depois desse momento fundador, duas conferências episcopais realizadas na América Latina – uma em 1969, na cidade colombiana de Medelín, e outra em 1975, em Puebla, no México – foram decisivas para a consolidação daquele novo pensar teológico que se propunha a transformar a realidade social do subcontinente, colocando-se ao lado dos mais pobres e questionando o sistema político-econômico vigente, produtor de desigualdades e injustiças.
Boff refere-se ao encontro de Medelín como o “casamento” da Igreja católica com os mais necessitados, momento em que “irrompeu na consciência eclesial a centralidade dos pobres e oprimidos […] e a urgência de sua plena libertação”. Em Puebla, nasceria o fruto dessa união: a Teologia da Libertação.
Mas os ventos acabaram soprando em outra direção: três anos depois da conferência de Puebla, o papa João Paulo II assumiu a Igreja de Roma, afastando-a das ideias semeadas por João XXIII. Lideranças católicas identificadas com a Teologia da Libertação foram perseguidas e sofreram processos eclesiásticos, inclusive o próprio Leonardo Boff. À época um frade franciscano, ele chegou a ter um livro proibido pelo Vaticano – Igreja, Carisma e Poder – e acabou deixando o sacerdócio em 1992, após ser punido, pela segunda vez, com um período de “silêncio obsequioso”: um eufemismo para a proibição de se manifestar publicamente.
As críticas da época, direcionadas aos sacerdotes empenhados na eliminação da pobreza e da injustiça, guardam muitas semelhanças com aquelas que costumam ser disparadas contra os progressistas nos dias de hoje, no Brasil da tal polarização. Nem dom Helder Câmara escapou delas. Como ele próprio costumava lembrar em vida:
“Se dou pão aos pobres, todos me chamam de santo. Quando pergunto por que são pobres, me chamam de comunista”, contava o carismático arcebispo de Recife e Olinda.
Apesar das pressões sofridas, a Teologia da Libertação não só se expandiu para o mundo inteiro como ampliou sua percepção acerca da temática da opressão, propondo, por exemplo, uma Teologia Feminista da Libertação. E, como relatou Leonardo Boff, a partir dos anos 1980, essa expansão de horizontes encontrou-se com o pensamento ecológico da época. Desde então, os teólogos ligados ao movimento passaram a denunciar também a opressão contra o planeta Terra.
“Se há uma opressão social e coletiva, há também uma opressão planetária envolvendo a própria Terra. Logo urge, como resposta, uma libertação social e planetária”, escreveu o teólogo na quarta e última parte do livro, intitulada “Libertação integral: do pobre e da Terra”.
E tudo isso há quase 25 anos, muito antes das preocupações ecológicas se transformarem na atual emergência climática.
Hoje em dia, as intuições presentes nesse modo latino-americano de fazer teologia voltam a encontrar acolhida em Roma, uma vez que o próprio Papa Francisco, identificado com elas, não se cansa de denunciar as muitas formas de opressão e agressão, inclusive no que se refere ao meio ambiente, como o demonstrou o Sínodo da Amazônia de 2019. E, para variar, vira e mexe o Sumo-pontífice é tachado de comunista.
No campo protestante, a Teologia da Libertação também teve seus expoentes e ganhou adeptos ao longo da história, que foram igualmente perseguidos e pelos mesmos motivos. Mas suas intuições permanecem vivas também entre eles. Henrique Vieira é um exemplo disso. Ele, aliás, já declarou várias vezes que não gosta de ser visto como um líder evangélico “exótico” por suas ideias progressistas, fazendo questão de lembrar que caminha pela senda antes aberta por Martin Luther King, pastor luterano e um dos principais nomes do movimento pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos. Entre as referências católicas, ele cita São Francisco de Assis, a missionária Dorothy Stang e, sim, ele mesmo: dom Helder Câmara.
Aliás, tal como dom Helder, o pastor que vai sambar na Avenida em 2020 também costuma ser chamado de comunista, o que ele rebate deste jeito: “sou muito mais radical que um comunista. Eu sou cristão”.
O Carnaval de 2020 promete. Ô abre alas para o Jesus da Gente passar.
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Categorias: Arte e Cultura, Viver
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