A primeira tese de doutorado escrita e defendida em quechua, a língua milenar indígena, falada nos Andes


O quechua (quíchua ou quéchua) é uma das línguas indígenas da América do Sul falada pelas populações dos Andes. É uma língua anterior ao Império Inca que, atualmente, é oficial em Peru, Bolívia e Equador.

Essa língua milenar finalmente entra com honrarias na universidade. A primeira tese de doutorado é escrita em quéchua após 468 anos de vida universitária no Peru.

A tese sobre literatura foi escrita por Roxana Quispe Collantes, educadora de Cusco, dando mostras de que o quéchua, língua oficial no Peru desde 1968, vem ganhando cada vez mais espaço e reconhecimento.

As defesas de doutorado, em geral, transcorrem em um rito bastante formal e engessado. Entretanto, o ato de defesa de Roxana, ocorrido na Faculdade de Letras da Universidad Nacional Mayor de San Marcos (Lima), foi inovador. As mesas da doutoranda e dos membros da banca foram decoradas com mantas andinas; a presidenta da banca, a professora Isabel Gálvez, conduziu a solenidade em quechua; e a acadêmica fez um agradecimento à terra antes de começar a sua apresentação. Com quatro folhas de coca em mãos, saudou os apus, ou deuses dos quatros pontos cardeais. Depois, envolveu as folhas de coca em um pequeno manto e o colocou sobre a sua tese, como informou o El Pais.

Collantes lamentou que sua tese tenha sido a primeira escrita em quechua.

“Para alguns parece impensável que o quechua seja uma língua apta ao campo acadêmico e científico”.

Ela se considera uma privilegiada por falar o quechua, já que nasceu em Acomayo, província de Cusco onde se fala a variedade de quechua Collao.

Peru tem 48 línguas originárias e todas têm o seu próprio legado de saberes e, por isso, podem e devem participar da vida científica e acadêmica. A vitalidade e a morte de uma língua dependem de seus falantes, e o quechua felizmente segue vivo graças a nós, que o falamos, mas é preciso avançar mais, dar um salto à escritura: não há um uso decidido do quechua para produzir e difundir um conhecimento adequado a estes tempos”, defende a especialista.

Um dos membros da banca de defesa, o professor Mauro Mamani, comentou que:

“Recordamos a cada dia que nosso pai sol se encontrava junto às nossas plantas, em nossa terra; agora, encontra-se junto a nossos livros, nossa biblioteca”, aludindo ao sol, principal deidade da cosmovisão andina.

Chuva de sangue

O tema da tese doutoral foi Yawar Para (Chuva de sangue), que é o terceiro poemário publicado, em 1967, pelo escritor Andrés Alencastre. A obra é composta por harawis, os textos líricos andinos. De acordo com o investigador sobre o mundo andino José María Arguedas, Alencastre foi o poeta mais importante do período republicano peruano que escreveu em quechua.

Além do valor literário da pesquisa, Collantes levou o quechua erudito para o meio acadêmico peruano, língua com a qual Alencastre escreveu os seus poemas. Para traduzi-la, precisou ir à cidade onde o autor viveu, Canas, visto que nem os pais nem os avós da pesquisadora conheciam o significado de muitas palavras.

“Graças às minhas viagens para compreender Yawar Para, ainda tenho muitas lições para aprender, dos taitas (as pessoas mais velhas que sabem, os sábios), dos runakuna (homens) e das warmikuna (mulheres) que escrevem em quechua, e que não são poucas”, esclarece Collantes.

Orgulho quechua

Mais peruanos têm se declarado falantes do quechua. Em 2017, 441.0000 peruanos a mais se declararam falantes da língua em relação a 2007. Eles são, hoje, 3.805.531 cidadãos que reconhecem o quechua como língua materna, segundo o Instituto Nacional de Estatística e Informática do Peru. Por causa disso, o Ministério da Cultura peruano vem capacitando servidores públicos para aprenderem as 48 línguas originárias do país.

Em 2016, a televisão estatal lançou o programa quechua Ñuqanchik (Nosotros; “Nós”, em português). Com o êxito da iniciativa, foram promovidos programas de rádio em quechua, em aymara e em asháninka. Segundo o presidente do Instituto de Rádio e Televisão do Peru, Hugo Coya, a audiência do canal estatal TV Peru quadriplicou no horário entre 17h e 18h (hora local) a partir da estreia de Ñuqanchik.

Ao mesmo tempo em que Collantes publica a sua tese, as emissoras públicas do Peru e da Argentina começam a produzir e transmitir, semanalmente, um programa de rádio em quechua. O Mana Saywayuq (Sem fronteiras) será conduzido por um conhecido comunicador peruano. Na Argentina, o quechua é falado nas províncias do norte Salta, Tucumán, Jujuy y Santiago del Estero.

Torna-se cada vez mais evidente a necessidade de valorizar e divulgar as “epistemologias do Sul”, conforme defende o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, a fim de que o conhecimento dos povos originários do sul planetário contribua para as discussões dos problemas contemporâneos.

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Gisella Meneguelli

É doutora em Estudos de Linguagem, já foi professora de português e espanhol, adora ler e escrever, interessa-se pela temática ambiental e, por isso, escreve para o greenMe desde 2015.


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