Desmontando mitos: por que Gandhi não é unanimidade


Como dizia Nelson Rodrigues: “toda unanimidade é burra”.

A radicalidade da evocação da fala do dramaturgo e jornalista brasileiro é uma provocação para que analisemos a complexidade das pessoas por trás dos mitos que são criados sobre elas.

E Gandhi é um bom estudo de caso para isso.

A biografia de Gandhi

Mohandas Karamchand Gandhi (2 de outubro de 1869 – 30 de janeiro de 1948) nasceu na Índia no seio de uma família hindu pertencente à casta dos comerciantes, conhecida por bania.

Como de costume em seu país, Gandhi teve um casamento arranjado aos 13 anos de idade.

Naquela época, a Índia estava sob o domínio do império britânico e, como alguém de sua posição, foi para Londres estudar Direito e voltou ao seu país para exercer a profissão, em 1915.

Foi advogado, nacionalista, anticolonialista e especialista em ética política, sendo o difusor da resistência não violenta para liderar a campanha de independência da Índia, a qual acabou reverberando em movimentos pelos direitos civis no Ocidente anos mais tarde.

Após o seu retorno à Índia, Gandhi começou a organizar camponeses, agricultores e trabalhadores urbanos para protestar contra o imposto sobre a terra e a discriminação excessiva. Assumiu a liderança do Congresso Nacional Indiano em 1921, liderando campanhas nacionais para várias causas sociais e para alcançar o autogoverno. A independência do Reino Unido só veio a ser conflagrada em 1947.

Gandhi ficou conhecido em todo o mundo por ser um pacifista e um defensor da pluralidade religiosa na Índia, dividida, sobretudo, entre uma maioria hindu e os muçulmanos.

Considerado complacente por alguns com os muçulmanos, acabou sendo assassinado pelo hindu extremista Nathuram Godse, em 1948, que disparou três vezes contra o peito de Gandhi.

Tantos anos após a sua morte, Gandhi é um exemplo de virtude para o mundo e segue sendo uma referência para os indianos, que o consideram o Pai da Nação e o veneram como um santo, já que, através da sua filosofia da luta não violenta, ele derrotou o império mais poderoso do mundo, libertando o povo indiano.

Os efervescentes anos 20

A década de 1920, em todo o mundo ocidental (e Gandhi esteve nele), foi marcada por ondas revolucionárias motivadas, sobretudo, pelo êxito da Revolução de 1917, na Rússia, que derrubou uma monarquia absolutista e instaurou um governo que representava uma população miserável que vinha sendo explorada.

Geograficamente, a Índia está muito mais próxima da Rússia do que os países ocidentais e comungava, à sua maneira, de uma desigualdade social brutal. Por isso, há de se indagar: não havia uma esquerda socialista indiana naquela época?

De acordo com a investigação do historiador Daniel Klent Carrasco, de 1917 a 1948, Gandhi foi declaradamente contra o socialismo e o comunismo, associando-o a uma ameaça violenta aos padrões culturais da civilização indiana. Dizia o Mahatma:

“A guerra de classes é alheia à essência da Índia”.

Na visão de Carrasco, ao tomar partido pela resistência não violenta em relação ao imperialismo britânico, Gandhi usou a conveniência da limitação voluntária das necessidades sociais como ferramenta para obtenção da justiça social.

Dessa forma, ao adotar a solução da não violência da luta de classes, Gandhi teria fomentado a ideia de que os ricos deveriam, de boa fé, tutelar os pobres para evitar um confronto e, em consequência, a redistribuição de riquezas – algo, como sabemos, utópico.

Consta, ainda, que o próprio Gandhi atuou contra os grupos socialistas e comunistas indianos para manter a sua hegemonia dentro do Partido do Congresso e no interior do movimento nacionalista.

A onda progressista da Revolução Soviética foi sufocada pelo poder ideológico do projeto de Mahatma Gandhi, o que significou deixar intocada a reforma das estruturas socioeconômicas na Índia.

Polêmicas e controvérsias

Recentemente, historiadores, sobretudo especialistas em História das Ideias, têm contestado essa imagem de glória unânime acerca da figura de Gandhi. Como qualquer ser humano, o venerável tinha lá as suas complexidades, as quais influenciaram sobremaneira a Índia atual.

Castas sociais

De acordo com o Aventuras na História, Gandhi era racista, misógino, favorável ao sistema de castas e venerador da pobreza, favorecendo, pois, a permanência das desigualdades socioeconômicas em seu país.

Essa revisão histórica, naturalmente, é bastante polêmica, mas, como toda história, precisa ser narrada. Para a escritora e ativista indiana Arundhati Roy:

“A doutrina da não violência de Gandhi camuflou a ideia da aceitação de uma das formas mais brutais de hierarquia social: a casta”.

Por outro lado, o historiador e professor Ramachandra Guha diz que é preciso compreender Gandhi à luz de seu tempo:

“A filosofia social de Gandhi era focada em abolir as castas. É claro que sob alguns aspectos ele ainda era filho do seu tempo, tendo nascido na Índia do século 19. Também tinha que enfrentar uma sociedade onde as castas eram muito enraizadas. Mas a superação das castas está ocorrendo aos poucos também graças à sua mensagem de igualdade. Essa crítica feita nos dias de hoje tem um viés ideológico distorcido e pouco científico”.

Misoginia

Entretanto, as críticas não ficam apenas na questão de classe, mas também na de gênero.

Gandhi fez voto de castidade sem antes consultar a sua esposa, Kasturba. Segundo ele, a falta de controle de impulsos carnais levava a problemas de saúde. Travou, também, uma guerra contra os contraceptivos, porque os considerava um sinal de promiscuidade.

Nem lá, nem cá

As questões históricas na Índia são extremamente complexas, assim como o ser humano Mahatma Gandhi. Todavia, é interessante lançar outra luz (ou uma dose de sombra) a essa personagem fundamental na história do século XX, que teve uma grande importância para o seu país e tornou-se um exemplo virtuoso para o mundo.

Mas é justamente essas complexidades que nos ajudam a entender melhor esse homem em seu tempo e o seu país agora, para além das idealizações do mito.

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Gisella Meneguelli

É doutora em Estudos de Linguagem, já foi professora de português e espanhol, adora ler e escrever, interessa-se pela temática ambiental e, por isso, escreve para o greenMe desde 2015.


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