Adolescência: Dissociação e Escapismo na Tragédia da Netflix


Aviso: contém spoiler! A série “Adolescência”, da Netflix, já é aclamada como uma obra-prima que irá marcar a história das séries televisivas. Feita em 4 episódios, cada um deles filmado em plano-sequência, com destaque para a fotografia e a atuação dos atores, “Adolescência”, em pouco tempo, virou o must see da atualidade.

Cena de Adolescência (Adolescence) Série da Netflix

Cena de Adolescência (Adolescence) Série da Netflix

Com tanta repercussão, provavelmente já se disse tudo sobre a série. Ainda assim, compartilho uma visão que foge dos clichês da Machosfera, Incel, Red Pill e feminicídio — temas centrais, sim, mas entrelaçados a muitas outras questões sociais que a série coloca no mesmo pano de fundo. Questões que deixam no espectador aquele amargo na boca que só as verdadeiras tragédias conseguem causar, justamente porque não apontam culpados específicos, mas revelam um problema muito maior e difuso, encoberto por uma cortina de fumaça criada pelas mídias e redes sociais — da qual ninguém sai incólume.

Do que se trata a série Adolescência?

Em poucas palavras, a série retrata os desdobramentos do assassinato de uma jovem, cujo autor do crime é um colega de escola de apenas 13 anos.

O que se evidencia nesses desdobramentos é uma característica comum a quase todos os personagens que atravessam a trama: uma espécie de dissociação misturada com escapismo. Por exemplo, em uma cena em que o policial Luke Bascombe (Ashley Walters) entra na sala de aula para falar com os adolescentes sobre o assassinato de Katie e pedir ajuda na apuração do crime, os jovens desrespeitam e riem, dissociando-se da gravidade do ocorrido.

O próprio policial incumbido da investigação é dissociado do filho. No pouco diálogo que têm, a impressão é a de que falam línguas diferentes.

Na busca pela arma do crime — uma faca — os adolescentes suspeitos revelam que seus pais nem se preocuparam ou perceberam a falta de facas em suas cozinhas, tampouco repreenderam os filhos. Em uma passagem quase insignificante da trama, o diretor da escola comenta com a supervisora que recebeu 14 ligações de pais querendo saber se a escola era segura — quando a pergunta justa que deveriam se fazer era: será que meu filho é uma pessoa perigosa para a sociedade?

A escola em questão é um lugar de desordem e caos total, onde cada um fala uma língua dissonante da outra. A impressão geral é a de que ninguém olha para ninguém de verdade. Ninguém enxerga, ninguém ouve — a não ser barulho e bagunça.

Chama muito a atenção a frieza na relação entre o assassino Jamie Miller (Owen Cooper) e seu pai, Eddie (Stephen Graham), que assiste ao vídeo do crime em que seu filho desfere facadas na colega e, ainda assim, dissocia a barbaridade da cena da figura inocente do filho. A mãe e a irmã de Jamie — toda a família — tenta seguir vivendo como se o crime hediondo não tivesse existido. No aniversário do pai, saem para comemorar, rindo e relembrando um passado remoto, feito de sangue e piada (o pai caiu e rachou o nariz na pista de dança ao som de A-ha). No meio tempo, Jamie liga para o pai para parabenizá-lo pela data e anuncia que irá confessar o crime de sua irrefutável autoria. A mãe pergunta se ele comeu; a irmã, se está fazendo ginástica. É tudo de um escapismo tão grande que, no final do quarto episódio, a mãe começa a chorar lágrimas acumuladas — e, até ali, seu choro parece um riso.

Dissociação e Escapismo: a Fuga da Realidade

Essa fuga da realidade permeia todos os personagens e tem uma moldura clara: as redes sociais (sobretudo o Instagram). Jamie vive no telefone ou no computador, fechado em seu quarto. Nas ruas, nas cenas intermediárias, as pessoas andam com o celular nas mãos — cada uma vivendo em sua própria ilha, provavelmente defendendo-se de uma realidade incômoda.

Essa é a verdadeira tragédia da série, que, a meu ver, alcançou o grande público justamente por fazer com que as pessoas se identificassem com uma realidade surreal dos dias de hoje, na qual escapar e dissociar são mecanismos de defesa que nos unem — e nos separam —, permitindo que as coisas continuem caminhando sabe-se lá para onde, tropeçando em distúrbios mentais, num senso geral de solidão e, nos casos mais graves, em crimes.

O homem que seria o pai, o mestre, a figura de referência de força familiar e social, é o personagem mais frágil da trama — aquele que sustenta, ainda que de maneira falsa e até quase o último frame, o papel do durão, musculoso, incapaz de abraçar o filho (vide os personagens Eddie e o policial Bascombe — fisicamente fortes, psicologicamente frágeis).

Nessa bagunça generalizada, fica a pergunta: quem é o culpado pelo assassinato da jovem Katie? A ausência de uma resposta clara é a angústia que se impõe, fazendo com que a série se torne, subitamente, um clássico, porque todo mundo se identificou por ter assistido as coisas chegarem onde chegaram, mas enxergando a realidade na versão que melhor se isenta, enquanto o circo pega fogo, tentando encontrar um outro a quem culpar.

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Daia Florios

Cursou Ecologia na UNESP, formou-se em Direito pela UNIMEP. Estudante de Psicanálise. Fundadora e redatora-chefe de greenMe.


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