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Há 20 anos, em 2004, estreava no Festival do Rio Estamira, filme dirigido por Marcos Prado, que recebeu o Prêmio de Melhor Documentário pelo Júri Oficial. Quem quer que estivesse presente naquela sessão, teria adivinhado estar diante de uma das maiores obras do cinema brasileiro, daquelas que rapidamente se tornaria um clássico. Uma obra clássica é aquela que pode ser vista a qualquer momento da história que fará sempre sentido. Impactante, verdadeiro e necessário, ao longo do tempo, Estamira foi colecionando tantos outros prêmios mundo afora, e ainda hoje é exibido em escolas de psicologia, psicanálise e filosofia por causa das grandes reflexões que o filme provoca.
Estamira, filme de Marcos Prado
Marcos Prado tinha em mente fazer um documentário sobre o lixo, o lixão no Jardim Gramacho, que seria (e foi) transformado em aterro sanitário depois das convenções da Eco 92, que denunciavam os problemas ambientais que lixos a céu aberto provocam sobre o meio ambiente. Chegando lá, o filme que começou documentando essa transformação, foi cooptado por Estamira, uma mulher madura que com seu modo poético e inteligente de falar, foi dando outra vida ao documentário.
Estamira, Esta-Mira, este olhar, esta visão de mundo tão lúcida, abarcava todos os problemas da Terra e até de fora dela, falando dos astros, de deus, das forças da natureza e sobretudo do lixo humano, também chamado de Trocadilo, ou o esperto ao contrário: o mal que permite que pessoas se misturem a ratos e urubus em busca da sobrevivência.
A Estamira mostrada pelas lentes de Marcos Prado não é, de certo, uma coitada. Ao contrário, é ela quem sente dó dos outros: “Eu não tenho raiva de homem nenhum, eu tenho é dó. Do Trocadilo, do esperto ao contrário, do mentiroso, do traidor. Desse é que eu tenho raiva, ódio, nojo (…) Eu transbordei de raiva de ficar invisível com tanta hipocrisia, perversidade, com tanto Trocadilo. As doutrinas erradas, trocadas, ridicularizou o homem.”
O lixo, o qual vemos no filme, vem dessas pessoas. São os restos de gente “copiadora”, “robô sanguíneo”, como diz Estamira, pessoas que não pensam e repetem padrões, rotulam, medicam e internam os “loucos”, que são talvez as pessoas mais lúcidas em uma sociedade doente.
Se não fossem o olhar e os ouvidos atentos de Prado, Estamira teria morrido na invisibilidade, logo ela que era o próprio deus, onipresente, onipotente, e cuja missão era dizer a verdade, nada mais que a verdade: “quem fez deus foi os homens!”
Deus não existe para quem vive no inferno, não existe para quem foi abusado sexualmente pelo próprio avô, para quem foi traído, estuprado. Deus não existe para quem come restos putrefatos, para quem tem como melhor opção na vida, catar lixo e dormir no relento sob a tempestade.
“Eu sou perfeita. Eu sou melhor que Jesus. A morte é maravilhosa! A morte é dona de tudo!”. O homem comum, copiador, robô sanguíneo, precisa de deus para suportar a ideia da morte, enquanto Estamira desmascara deus como sendo ele o próprio Trocadilo, o esperto ao contrário, que fez o homem à sua semelhança.
“A vida é dura”; “a vida não tem dó, não” e “problema mental é emprestável, qualquer um pode ficar perturbado”. Quer maior verdade que essa? Qualquer pessoa que passa por grandes traumas na vida, que experimenta privações que ferem a dignidade humana, está sujeita a perturbações mentais.
São muitas as falas inteligentíssimas captadas por Prado. Todo o filme é um tratado de filosofia, não à toa Estamira é um clássico que depois de 20 anos ainda é estudado nas escolas.
Cartaz – Estamira, filme de Marcos Prado
Estamira foi uma mulher extremamente sensível e inteligente, que depois de ter passado por vários traumas na vida, começou a se sentir perseguida. O melhor que ela pode fazer por si mesma, para se salvar nesse mundo repleto de trocadilos, foi entrar na megalomania de se sentir a dona da verdade, a controladora do tempo, a bruxa do Gramacho, deus!
Sua única sorte – e ela diz isso no filme – foi ter ido ao lixão. Lá ela e Marcos Prado se encontraram e de lá vem a sua verdade nua e crua, a vida como ela é. Não a vida das redes sociais ou daqueles que insistem em romantizar a pobreza brasileira. E apesar do ambiente extremamente hostil do lixão, foi lá, naquele drama compartilhado, na humanidade daquelas pessoas que, juntas, se curavam umas às outras, às vezes cantando, brincando, trabalhando e cooperando, mas sem florear o real, feito também de sujeira, de mosca, de rato, de urubu, de luta pela sobrevivência.
Se Deus fez tudo isso, ele é tudo de bom e de ruim, ele é ambivalente e por isso Estamira é deus, pois é perfeita assim, não como o deus criado pelas instituições.
É por isso que se ensina Estamira nas escolas de psicanálise. Estamira é um tratado freudiano. É O Mal-estar na Civilização, é o Psicologia das Massas, é O Futuro de uma Ilusão. É a crítica do deus institucional, é o se virar como se pode, com o mecanismo de defesa que se encontra. Não é por menos que Estamira também seja sociologia, filosofia, ecologia, educação, arte, cultura.
Que estes 20 anos nos façam lembrar de quantas pessoas, como Estamira, ainda são talentos e possibilidades invisíveis neste mundo de trocadilhos. Estamira conta ter trabalhado 20 anos no Gramacho: “a coisa que eu mais adoro é trabalhar”, mas no final do filme ela diz: “isso aqui é escravos disfarçados de libertos”.
“Tudo o que é imaginário tem, existe, é”
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Categorias: Arte e Cultura
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