Os gringos amam, querem ver como a gente vive, têm a imagem romântica de que a favela, apesar dos pesares, são lugares incríveis onde o povo é feliz. A abertura das favelas para os usos turísticos e culturais poderiam ser bons também para os moradores destes locais? Pois um estudo da FAU-USP tentou esmiuçar essa hipótese.
Favela é favela, lugar onde povo pobre mora. Casas mal-ajambradas, encarapitadas nos barrancos, vielas e escadinhas para subir aos pontos mais altos, águas escorrendo pelas sarjetas, crianças correndo de um lado para outro, trabalhadores saindo de madrugada para os empregos, mulheres varrendo calçada, lavando roupa, pendurando nas lajes. Todo um colorido especial, ajuntamento de povo com suas músicas, falas e risos, e gritos, choros e dramas. São gente, como a gente, claro. Mas, para muitos, motivo de medo por conta dos crimes que acontecem, e não só lá, muitas vezes, nem lá. Ou pelos bandidos, reais ou imaginários, que la tocaiam. Realidade do capitalismo que a tudo põe preço, e a todos quer usar.
Claro, para o turista de países ricos pode ser até interessante de se conhecer uma realidade tão distante da sua, até pode ser pitoresco, uma aventura radical, passar uns dias, ou umas horas, em uma favela, mas convenhamos, é de extremo mal gosto pensar que aqueles que moram lá gostam de serem vistos como se fosse um zoológico. Não, não gostam. E sequer aproveitam do dinheiro que o turismo de favela deveria injetar nas comunidades. Isso porquê esse dinheiro não é injetado lá, sai para fora, na mão das agências turísticas que apresentam o pacote. Enfim, mas é exatamente isso que se vê ocorrer, nas últimas décadas no Rio de Janeiro, o uso das favelas como produto turístico para europeu e norte-americano verem, sentirem, cheirarem.
Todo esse processo foi estudado pela arquiteta Izabel Cristina Reis Mendes, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP para sua tese de doutorado. A pesquisa de dados para esta tese passou pela análise de programas de governos federal e estadual, a avaliação de projetos de promoção cultural de favelas realizadas por ONGs, em paralelo com visitas a comunidades cariocas, entrevistas a moradores e o levantamento dos museus, centros culturais e atividades de turismo existentes nas comunidades objetos de estudo, entre 2012 e 2013. A tese foi defendida em 2014.
Nas últimas duas décadas, as favelas passaram a ser vistas pelo poder público e pela sociedade, já que não se conseguia mais ocultá-las, de tão numerosas que são, nos morros do Rio de Janeiro. Vários projetos pensados, de urbanização, de saneamento mínimo, de demolição e deslocamento das populações para outros lados, em conjuntos habitacionais feitos pelos governos. Muito se tentou, muito se fez, mas as favelas continuam lá, nos morros, onde já estão estabelecidas há duas, três ou mais gerações, com luz em poste, água nas torneiras, ou nas bicas de rua, algumas ruas onde entra carro, outras, vielinhas onde só passam os pedestres, motos e bicicletas.
Foi tentada a reconstrução da sua imagem, transformando-as em locais a serem consumidos pela sociedade capitalista. Foi buscada a integração desta nova imagem na paisagem urbana carioca. Se o resultado é positivo, realista, discordo. Como diz a pesquisadora: “a favela era vista como um problema e foi transformada em um produto cultural. E uma das formas de consumir esse produto pode ser verificada, atualmente, com o seu uso turístico e cultural”.
Mas, nessa realidade, que é econômica, mas também política, a favela está inserida na cultura popular brasileira, pelo samba, pelo carnaval, pela realidade do povo trabalhador e também, pela realidade dos marginalizados sociais. É essa cultura, de rebeldia e protesto, de confronto e criatividade, da busca de soluções insólitas para facilitar a vida, que atrai o turista e quem vende esse “turismo de ver como vive essa gente”.
O primeiro roteiro de turismo em favela, e o início dessa prática, foi na Rocinha, diz a pesquisadora em seu trabalho. Foi lá, na Rocinha, entre o bairro de São Conrado e a Gávea que começou essa forma de turismo que tem o nome de “turismo da pobreza”, segundo os entendidos. A Rocinha, que já tem recursos de bairro, tem roteiros turísticos operados por empresas externas com guias da comunidade.
E o primeiro roteiro oficial, reconhecido pelo poder público, ocorreu no Morro Dona Marta, em Botafogo. Os guias turístico seriam das comunidades, assim era a proposta, como forma de reverter os ganhos aos próprios moradores. Foram feitas oficinas de treinamento nas comunidades. A proposta inicial era definida em conjunto, proponentes e moradores, pois estes últimos não são contra o turismo, e mais ainda pois lhes traria benefícios porém, o constrangimento existiu – “como se fizessem parte de um zoológico humano criado para os visitantes”, segundo relato de moradores à pesquisadora.
Outro roteiro é no Morro do Cantagalo, em Ipanema. O elevador panorâmico leva ao alto de onde se vislumbra a linda orla com suas praias douradas. Lá tem estação de metrô, que facilita o acesso e circuito de ruas e becos grafitados especialmente para o roteiro turístico.
Já no Complexo do Alemão, em Olaria, Penha e Bonsucesso, tem o teleférico que dá acesso aos pontos mais altos. Nessa área encontra-se vários roteiros com guias especializados. O “Roteiro do Príncipe”, por exemplo, mostra onde ocorreu a visita do Principe Harry, da Coroa Britânica, em 2012.
Também foi estudada a questão na favela Tavares Bastos, no bairro do Catete, onde há uma casa noturna “The Maze” onde “a língua predominante é o inglês”, por ser muito freqüentada por turistas estrangeiros.
Outro local visitado pela pesquisadora foi a favela da Maré, onde há um centro cultural e um museu.
Em favelas menores, a pesquisadora detectou maior possibilidade de ganho real por aqueles moradores que se dedicavam ao turismo, como por exemplo, ao alugarem quartos para hóspedes ou mesmo, ao organizarem sua casa como hostel. Nesses casos, os impactos da atividade turística tem várias nuances positivas, não só pelo incremento financeiro que a atividade aporta mas também, e muito, pela troca humana que se estabelece entre morador e visitante.
Como conclusão do seu trabalho, Izabel Mendes ressalta que “o que está acontecendo é algo inédito na história das favelas cariocas, pois elas estão sendo enxergadas como parte da cidade. Apesar de todos os problemas, elas estão sendo integradas à estrutura urbana de outra forma, ainda que um dos instrumentos que permita isso — o consumo da favela por meio do turismo — seja questionável”.
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Fonte foto: photography.nationalgeographic.com
Categorias: Viajar
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