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Foi não com surpresa, mas com preocupação, que a sociedade brasileira recebeu a notícia sobre a intenção do nome de um ex-missionário evangélico para comandar uma pasta bastante sensível da Fundação Nacional do Índio (Funai), a Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC).
O nome de Ricardo Lopes Dias, que foi proposto pelo presidente Jair Bolsonaro, recebeu uma chuva de críticas por parte dos povos indígenas brasileiros, bem como de várias entidades. A razão é que o currículo de Dias, que trabalhou durante muitos anos na Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB) – a Ethnos360 – é internacionalmente conhecida por seu trabalho evangelizador, que, supostamente, estaria relacionado com a morte de indígenas paraguaios e brasileiros nas décadas de 1970 e 1980.
“Servimos a Igreja treinando e enviando missionários transculturais para plantar igrejas autóctones e traduzir a Bíblia entre etnias não alcançadas”, lê-se na descrição da Missão Novas Tribos do Brasil – MNTB, em sua página Facebook .
A organização religiosa realiza um trabalho de violência simbólica para forçar o contato e a evangelização de povos indígenas isolados em todo o mundo. Ela tem origem nos Estados Unidos e atua no Brasil desde 1950 promovendo a evangelização de indígenas brasileiros.
Além do suposto caso ocorrido no Paraguai, a Missão Novas Tribos é conhecida pelas mortes de indígenas do povo zo’é, no Pará, por causa do contato entre este e os missionários, em 1982. No livro Memórias Sertanistas: Cem Anos de Indigenismo no Brasil, o jornalista Felipe Milanez e o ex-servidor da Funai Fiorello Parise relatam que os missionários em contato com os zo’é provocaram surtos de gripe e malária, levando à morte vários indígenas.
Entretanto, a MNTB alega que as doenças já existiam antes da chegada dos seus missionários e que ela teria, ao contrário, ajudado a salvar vidas. A empresa informou ainda que, tendo sido investigada, o processo nº 2000.39.02.0001859-0/IPL Nº 085/98-DPF.B/SNM/PA concluiu que a entidade não teve qualquer relação com as mortes dos indígenas zo’e.
Ricardo Lopes Dias é doutor em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC), mestre em Ciências Sociais (Antropologia) pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e bacharel em Antropologia pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam). É, também, bacharel em Teologia pela Faculdade Teológica Sul Americana (FTSA) e fez pós-graduação em Antropologia Intercultural pela UniEvangélica, em Anápolis (GO), um polo de entidades missionárias no Brasil. Entre 1997 e 2007, esteve na Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), com a qual ele afirma não ter mais vínculos.
Uma liderança indígena – Beto Morubo, da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Unijava) – à BBC News Brasil contou que Ricardo Lopes Dias é conhecido no Vale do Javari por seu trabalho missionário junto a um pelotão constituído por indígenas do povo mayoruna que deixaram as suas aldeias após terem sido evangelizados. Ele conta que os missionários levam doenças e desorganizam os grupos com os quais têm contato.
Sobre a sua indicação ao cargo, Dias disse à BBC que ela foi motivada pela sua atuação como antropólogo, e não como missionário.
“Nunca escondi e não escondo meu trabalho no passado como missionário, mas hoje sou antropólogo, com mestrado e doutorado em universidades públicas de três Estados”, esclarece.
O presidente da Missão Novas Tribos do Brasil, Edward Gomes Luz, comemorou entusiasticamente a indicação de Dias à Funai:
“É uma pessoa muito capaz e tecnicamente preparada para qualquer cargo. Se for olhar a capacitação e a pessoa em si, ele é perfeito”.
Entretanto, de acordo com a BBC, um pesquisador, um indígena e um servidor da Funai especialistas em lidar com indígenas isolados se mostraram apreensivos com a indicação de Bolsonaro por temerem que comunidades já em situação vulnerável sejam expostas à evangelização.
E existem motivos para essa preocupação, se for analisado o percurso acadêmico de Dias, além do missionário. Na seção de agradecimentos de sua dissertação de mestrado, ele agradece formalmente a “Missão Novas Tribos do Brasil por ter sido tão importante na minha formação e por ter viabilizado o meu tempo no campo”. Na dissertação, segundo à BBC, Dias afirma que a MNTB tem por objetivo:
“A plantação de uma igreja nativa autóctone em cada etnia e para isso dispõe de treinamento bíblico, linguístico e transcultural próprio, além de uma consultoria técnica para assessoria estratégica e de acompanhamento espiritual por meio de visitas regulares da liderança aos missionários nos campos”.
A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) emitiu uma nota dizendo:
“Nossas famílias sofreram historicamente com a atuação de missionários proselitistas – muitos deles da Missão Novas tribos do Brasil (MNTB) – que fizeram contato forçado com nossos avôs e avós. O contato forçado foi feito através de mentiras, violência e ameaças de morte”, informa a Survival Brasil.
A Survival International, que é um movimento global que luta pelos direitos dos povos indígenas, disse ainda que:
“Colocar um missionário evangélico no comando do departamento de índios isolados da FUNAI é como colocar uma raposa no galinheiro. É uma agressão, uma declaração de que eles querem entrar em contato com povos indígenas isolados à força, o que os destruirá. Juntamente com a recente proposta do presidente Bolsonaro de abrir terras indígenas para mineração e exploração, este é um plano genocida para a destruição total dos povos mais vulneráveis do planeta cuja sobrevivência está agora em risco. Nós resistiremos com todo o nosso poder, junto com nossos amigos indígenas do Brasil.”
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) também repudiou, em nota, a indicação de Dias, motivada por uma orientação “neocolonialista e etnocida, de atração e contato forçados, com o uso do fundamentalismo religioso como instrumento para liberar os territórios destes povos à exploração por grandes fazendeiros e mineradores”.
A Associação dos Povos indígenas do Brasil (Apib) afirma que a nomeação de Dias cede a interesses das bancadas evangélica e ruralista, principais bases de sustentação do governo Bolsonaro, informa El Pais.
“Há inúmeras situações onde o contato forçado provocado por grupos missionários, inclusive ligados à MNTB, teve como rápida consequência um elevado número de mortes por doenças. Há um rápido desmonte das políticas públicas direcionadas aos povos indígenas por parte do Governo Bolsonaro, por meio da submissão da política indigenista a interesses de grupos religiosos que dão suporte ao seu Governo e, em muitos casos, a grupos ruralistas interessados pelas terras tradicionalmente ocupadas por esses povos”, diz a nota da entidade.
A Constituição Federal de 1988 garante direitos aos povos indígenas no Brasil em consonância com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão e a Organização das Nações Unidas (ONU), que são instrumentos jurídicos internacionais que legitimam as práticas dos povos indígenas.
Isso significou para o Brasil o rompimento com valores etnocêntricos que, historicamente, reforçavam assimetrias nas relações Estado brasileiro e povos indígenas, bem como uma perspectiva integracionista – a qual a MNTB preconiza.
Em 2009, a Funai passa por um processo de reestruturação que sinalizou um gesto do governo brasileiro de fortalecer a garantia dos direitos dos povos indígenas no sentido de promover e ampliar as políticas sociais para esses grupos, entre elas, a demarcação de Terras Indígenas (TIs), para que as suas práticas culturais e seus modos de vida tivessem a garantia do Estado, e não ficassem suscetíveis a governos.
A Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato dentro da Funai tem como principal função proteger os povos isolados. Segundo o órgão, só na Amazônia há 107 registros da presença de povos em isolamento voluntário. Isso faz do Brasil o país com mais povos nessa situação no mundo.
Desde 1987, ou seja, antes mesmo da Constituição de 1988, a Funai já trabalhava sob o princípio de que qualquer iniciativa de contato deveria partir desses próprios povos, cabendo ao Estado protegê-los e demarcar seus territórios.
Antenor Vaz, que foi servidor da Funai e chefiou a Frente de Proteção Etnoambiental da Funai no Vale do Javari e é um dos maiores especialistas em povos isolados mundialmente, disse à BBC que a nomeação de Dias ameaça ruir com uma política de referência internacional. Ainda que Dias tenha estudado Antropologia, é um missionário de vocação.
“Eles têm a estratégia de chegar aos indígenas oferecendo ações sociais em educação e saúde. Por trás disso, vem a proposta evangelizadora”, comenta Vaz.
Aos poucos, os missionários vão dividindo as comunidades e cooptando-as para um cristianismo extremista. Embora eles defendam em seus discursos que atuam para “salvar vidas”, por trás há uma prática sistemática de desrespeito a pessoas que têm seus modos próprios de vida. Os missionários tentam impor um modelo sociocultural aos indígenas que fragiliza as suas comunidades de pertencimento, provocando um “racha cultural”, além das mortes já relatadas.
A nomeação de Dias pode ser o fim de uma política de Estado exemplar para o mundo, mas, principalmente, uma ameaça real às vidas dos povos indígenas brasileiros.
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Categorias: Informar-se, Povos da Floresta
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