“Se não tiver mais reza, o mundo vai acabar” é o que afirma a rezadora Estela Vera, de 70 anos, uma opuraheiva, pajé do povo Ava Guarani. Estela vive na terra indígena ancestral TI Potrero Guasu, na fronteira entre o Mato Grosso do Sul e o Paraguai e seu depoimento foi colhido pela antropóloga Lauriene Seraguza para a série “Palavras indígenas”.
A “Palavras indígenas” é uma série que será publicada na próxima edição do livro “Povos Indígenas no Brasil 2011-2015” e que será lançado pelo Instituto Socioambiental – ISA, com falas de mulheres de vários povos. .
A frase título deste artigo, “se não tiver mais reza, o mundo vai acabar”, é muito significativa. Não é uma premonição de apocalipse, não. É mais uma constatação de realidade fundamentada na filosofia indígena de vida e interação com a natureza. É o grito das mulheres indígenas que vêm seus valores norteadores da sociedade se perderem no limbo criado pela sociedade ocidental, nos conflitos pela terra, a impossível propriedade privada de bens comuns dos povos como a terra em que pisam, a água que bebem, a luz que lhes brilha e o ar que respiram, como a natureza, que é GAIA, Pacha-Mama, nosso planeta Terra.
Reflita você também sobre as palavras desta opuraheiva, que do alto dos seus 70 anos e do brilho de sua cultura ancestral fala coisas verdadeiras para quem quiser entendê-las.
“Se não tiver mais reza e rezador, o mundo vai acabar. Tudo vai acabar, os sinais de que o mundo está acabando já estão aparecendo. Hoje temos menos rezadores (opuraheiva), chuvas sem limite. Está tudo fora do tempo.
No mundo todo está acontecendo isso, não é só no Brasil. Aqui estamos um pouco mais protegidos porque ainda temos opuraheiva. Tudo vai estar perdido. Os cantos hoje estão muito mais curtos (mbyky) do que eram antes e os seres humanos estão morrendo muito antes nos tempos de hoje. Pelo jeito vai continuar assim, por causa do canto curto, que não é mais como o antigo (longo, puku).
Vivo com a minha reza ainda pela vida dos inocentes, pois ainda aparecem crianças que esperam muitas coisas de mim. Por isso tenho forças para continuar a minha vida como opuraheiva.
Se hoje o mundo ainda não acabou é pela vida destes inocentes, pois, do mesmo jeito que o Kuarahy (Sol) ilumina a gente, ele pode sumir e acabar com tudo. Isso vai acontecer quando acabarem os opuraheiva. Kuarahy pode fazer uma troca e nos devolver o que fizemos contra terra, para então, renovar e começar tudo de novo. […]
Nós opuraheiva somos diferentes dos crentes, dos evangélicos. Nós pedimos pela vida de todas as pessoas, pedimos para melhorar cada vez mais o nosso mundo. Os crentes pedem para Jesus vir logo, acabar com tudo e levá-los embora para junto dele.
Não é o mundo que precisa de solução, somos nós que estamos fazendo tudo errado. Nós é que não obedecemos mais as inspirações que Kuarahy nos deixou, não estamos sendo obedientes a ele e por isso, ele já se cansou de nós.
Temos que obedecer o hembijoykue, as inspirações que Kuarahy nos deixou. Jasy e Kuarahy são como açúcar pra nós: Jasy é responsável pela gravidez das mulheres; nos torna doces. Jasy é como açúcar e Kuarahy é como uma flor. O batismo deles se chama: Kaaguy yvoty, Kuarahy eKaaguy açuca´i, Jasy. Por isso ainda hoje tem mulheres com filhos gêmeos: Jasy e Kuarahy são gêmeos e deixaram para ser assim na terra.
Eu me sinto muitas vezes presa, pois não sei onde vou fazer a minha reza, para quem vou contar os meus cantos, o meu conhecimento. Durante os meus sonhos, sou cobrada para fazer a minha reza e os meus cantos. Sonho sempre que tenho que rezar com dois meninos e duas meninas moça, durante quinze dias, para continuar a saber o que vai acontecer no nosso mundo. Mas acordo e penso: pra quem vou fazer meus cantos, minhas rezas? Para quem vou contar minhas histórias. Quem será que está interessado?
No Paraná, um vento forte levou um pindó (coqueiro) e o deixou em cima de um rio. Nós estamos assim, em cima de um rio, e a qualquer momento vamos saber o que vai nos acontecer. Eu me comparo com este pindó: a qualquer momento Ñandejara (“Nosso Deus”) pode vir e tirar minhas raízes, me levar embora pra sempre, sem deixar semente nenhuma. […]
Esta é minha palavra”.
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